Sábado, 20 Abril

«Beira-Mar» e um recado aos jovens LGBTs: “no final o bem vence”

 

Foi numa fria cidade do sul do Brasil, Porto Alegre, que um simples projeto entre amigos da faculdade de cinema transformou-se num pequeno-grande filme a partir da sua estreia em duas diferentes secções (Fórum e Generations) da última edição do Festival de Berlim, ocorrido em fevereiro. A partir daí, os argumentistas/realizadores de Beira-Mar, Márcio Reolon (na foto à esquerda) e Felipe Matzembacher, iniciaram um périplo por mais de uma dezena de cidades europeias antes da antestreia brasileira ocorrida na última Mostra de Cinema do Rio (outubro). A obra estreia no seu país natal nesta quinta-feira (5 de novembro) e tem os seus direitos já vendidos para Portugal, onde possivelmente chegará aos cinemas em janeiro de 2016.

A história é simples: dois adolescentes (vividos por Mateus Almada e Maurício Barcellos) vão passar um fim-de-semana na praia e tentar resolver uma contenda familiar de um deles. Entre festas, conversas banais e passeios a esmo, mais sentimentos virão à tona enquanto o mar ruge no horizonte e enquadra sentimentos escondidos e desejos recalcados…

De passagem por cá na última edição do Queer Lisboa, os cineastas conversaram com o C7nema sobre a ida a Berlim, a questão da homossexualidade no Brasil, as expetativas para o lançamento comercial do filme no país e os novos projetos. Como nota curiosa, vale relembrar o único ponto “negativo” em tudo o que tem ocorrido: o facto de um dos protagonistas , a dada altura do filme, ter pintado o cabelo de azul – gerando óbvias conexões com a personagem de Léa Seydoux em A Vida de Adéle. “Nós filmamos esta cena antes do lançamento do filme e nunca quisemos homenagea-lo. Com os comentários, até pensamos em tornar o filme preto-e-branco!”, enfatizou Márcio Reolon. 

Os homossexuais, o Brasil e a Idade Média evangélica

As personagens do filme não têm vida fácil: sobre eles pesam as sombras e os temores da homossexualidade, âmbito declarado onde o filme circula. Neste sentido, não custa lembrar as confusões envolvendo Praia do Futuro (os espectadores eram avisados antes de entrar no cinema que havia cenas “eróticas” entre pessoas do mesmo sexo) e a recente aprovação de um muito conservador estatuto da família num parlamento brasileiro assombrado por demônios medievais (a influência dos evangélicos). Eles têm receio do que pode acontecer?

Diz Felipe: “No caso do Praia do Futuro, acho que as controvérsias têm a ver com o fato do protagonista ser o Wagner Moura, do Tropa de Elite, aquele chefe de família meio conservador, que mata bandido. E a aí pessoa chega lá pensando que vai ver um filme destes, encontra ele fazendo sexo com outro homem e leva um susto. Com o nosso vai ser um pouco diferente. Estamos ansiosos para saber como vai ser“.

No quesito homofobia, aliás, o Brasil tem um cenário curioso. Enquanto, como relembra Felipe, o país figura nas estatísticas como um dos líderes na violência contra LGBTs no mundo, no ano passado Hoje Eu Quero Voltar Sozinho, filme de abertura do Queer Lisboa em 2014, foi a indicação brasileira para os Oscares. “Nós queríamos fazer um afago na juventude LGBT“, assinala Márcio. “Tantas notícias negativas acabam por dilacerar a autoestima e a esperança num futuro melhor e isso é muito brutal, principalmente quando se é jovem. O filme é um pouco a nossa maneira de dizer que as coisas estão melhorando e eu acredito que tudo vai ficar bem a longo prazo. No final o bem vence“.

Berlim: entre jovens e cinéfilos

Foi uma grata surpresa participar da Fórum“, diz Felipe. “É uma secção muito marcada pelo olhar estético e o filme foi muito bem-recebido lá“. Mas não só: dado a sua temática, centrada em descobertas adolescentes ligadas à identidade e à sexualidade, Beira-Mar também participou da “Generations”, dedicada aos mais novos. O cineasta reforça: “Foram sessões lindas, pois aí já foram para o público adolescente. Já conhecíamos a reação dos cinéfilos, agora estávamos diante dos jovens, que tinham reações vibrantes e calorosas“.

Juventude, aliás, é palavra-chave de um projeto feito sem espera de fundos governamentais (a exceção foram dois editais ganhos na fase de finalização) porque os seus criadores o viam como algo urgente, fortemente entrelaçado com essa fase da existência. Márcio explica: “Existem muitos filmes que retratam a juventude com um olhar nostálgico, mais idealizado e nós não queríamos isso. Para nós era importante ter um diálogo o mais direto possível com esta fase da vida. Se fizéssemos o filme daqui a dez anos provavelmente trataríamos o tema de outra forma. Tinha que ser instantâneo“.

Construções artesanais e terapia em grupo

Uma das razões do encanto do filme talvez sejam as suas opções estéticas, de alguma forma ligadas a algum cinema de arte europeu – embora os cineastas façam questões de enfatizar as influências do moderno cinema latino-americano e autores brasileiros como Chico Teixeira e obras como A Casa de Alice. Em destaque está uma rigorosa elaboração naturalista/realista, construída aos pormenores na aparente banalidade dos diálogos, com pouca banda sonora, câmara na mão e, sobretudo, uma estupenda direção de atores.

A base do projeto é o trabalho dos intérpretes num processo de construção de forma “artesanal” a partir de um longo período de ensaios exaustivos com os dois atores não-profissionais que compõem o elenco. Para as filmagens que decorreram durante um mês, o grupo mudou-se para a casa da família de um dos realizadores em Capão da Canoa, localidade do gélido litoral sulista.

Foram sete meses de ensaios, através de conversas muito íntimas, com muita exposição e revelações pessoais sobre os temas do filme. Era quase uma terapia em grupo“, relata Márcio. Esse processo seria viável num âmbito mais comercial? “Bom, nunca abriríamos mão disto. Sem este trabalho com os atores não haveria graça“, reforça.

Para já o novo projeto, para além da série televisiva O Ninho, feito para o canal de televisão local TVE, está já em preparação e chama-se Garoto Neón. O projeto foi vencedor do Rubberballs, prémio para desenvolvimento de roteiro do Festival de Roterdão. Conforme revela Márcio, haverá temas semelhantes, mas os personagens serão mais maduros, mais adultos.

 

 

 

Notícias