Sexta-feira, 19 Abril

Joaquim Pinto: «o cinema português não é insensível a grupos de interesses»

O Festival de Berlim já lá vai, tal como os seus prémios. No entanto, nas reverberações pós Berlinale olhamos ainda para matéria dada, isto é os filmes que pudemos ver além da seleção oficial competitiva. Nesse capítulo apetece dizer que Rabo de Peixe, o documentário de Joaquim Pinto e Nuno Leonel, numa versão “director’s cut” do original de 2003, foi um dos melhores filmes que vimos – a par dos dois chilenos El Club, de Pablo Larraín, grande Prémio do Júri, e El Botón de Nácar, de Patricio Guzmán, a quem foi atribuído a distinção de Melhor Argumento.

Foi um Joaquim Pinto já restabelecido dos seus problemas de saúde – aliás, na origem do impressionante documentário E Agora? Lembra-me – que veio a Berlim apresentar Rabo de Peixe no Fórum da Berlinale, a secção dedicada a projetos mais experimentais. Durante uma refeição rápida entre as várias solicitações, o realizador, que esteve acompanhado por dois habitantes de Rabo de Peixe, o pescador Pedro Moniz (personagem central do documentário) e a sua esposa, Diana Moniz, precisou alguns aspetos relativamente à produção da remontagem do documentário, apresentado previamente na RTP, numa versão de televisão de 50 minutos sobre a pesca artesanal nessa vila piscatória dos Açores. Isto, ao mesmo tempo que ausculta o estado de saúde do cinema português.

Pinto começou por salientar todo o material captado entre 1998 e 2002, bem como a nova montagem, foi “completamente feita a dois”, sublinhando a co-autoria de Nuno Leonel num trabalho de realização com o recurso frequente a duas câmaras. “Normalmente, nas sequências aquáticas o Nuno está dentro de água e eu estou por cima”, explicou. Outras sequências, como as festas, foram filmadas com duas câmaras, e em alguns casos até a mais de dois, “porque os miúdos também andavam com a câmara.”

O que de imediato se sente neste cativante documento é a identidade destas imagens da faina com o estilo de biográfico presente em E Agora? Lembra-me, em que uma vez mais a voz off se liga de uma forma íntima às imagens, pontuando aspetos pessoais dos autores, acabando por criar com o antecessor um interessante diálogo. Por exemplo, vemos agora imagens da receção ao cachorro Rufus, o cão de fila encontrado pelo casal e que em E Agora? já tem 15 anos.

O que esteve na origem da decisão para remontar Rabo de Peixe, este “director’s cut” exibido no Fórum aqui em Berlim?

Quando estávamos a terminar o E Agora… vimos uma série de material que tínhamos filmado, não só nos Açores, mas ao longo dos anos; e logo nessa altura percebemos vários aspetos deste documentário que nos tinham deixado descontentes; achámos que era altura de pegar nesse material e fazer algo como tínhamos pensado inicialmente. O impulso partiu daí.

Pode dizer-se que é um outro filme?

Não é um outro filme, é uma remontagem.

Mas a voz off é nova!

A voz off é nova, nem podia ser de outra maneira, porque acrescentámos muito ao original, cerca de 40%. Por isso teríamos forçosamente de fazer uma nova voz off.

Qual foi o principal desafio de filmar a pesca em Rabo de Peixe? A filmagem subaquática?

O mais difícil foi adaptarmo-nos às condições difíceis de trabalho nos barcos de boca aberta, tendo em conta que o tempo nos Açores é muito variável e por vezes o que parecia um mar calmo podia transformar-se em vagas alterosas. Mesmo os pescadores experientes por vezes enjoam… O Nuno preparou-se bem para as filmagens sub-aquáticas, mas olhando retrospectivamente, percebemos que mergulhar só em mar aberto e com correntes fortes representava um risco adicional.

Como está hoje a pesca artesanal nos Açores, tendo em conta a atividade dos navios coreanos e espanhóis?

Segundo as informações que temos, as capturas caíram drasticamente nos últimos anos. De acordo com os dados da Cooperativa Porto de Abrigo, “os rendimentos médios dos salários dos pescadores nos Açores em 2013 foram de 311 euros, sendo que em 2014 se situaram nos 251 euros, numa região onde o salário mínimo é de 530 euros.” Pelo relato do Pedro Moniz, a situação agravou-se e ele é obrigado a deslocar-se muito mais longe da ilha de São Miguel para conseguir pescar. Não nos atrevemos a apontar as causas desta situação. Supomos que sejam múltiplas; pesca industrial não controlada, excesso de capturas no atlântico, decisões tímidas ou ineficazes quanto à protecção dos recursos, etc… O Pedro diz-nos que é fundamental a defesa e o controlo de “santuários”, zonas onde a pesca seja interdita, de forma a garantir a sustentabilidade da atividade. E acrescenta que não é só uma questão de garantir o seu futuro, mas também o dos seus filhos e das gerações mais novas.

Pode dizer-se que esta é uma espécie de prequela de E Agora? Lembra-me...Tendo em conta o lado pessoal e confessional desse filme? Apesar de neste filme isso também existir, como o caso do vosso cão, o Rufus, que vemos cachorro em Rabo de Peixe e já velhote em E Agora…

Um filme é necessariamente uma visão pessoal. Pretender que ao documentar a realidade se oferece uma visão objectiva, que não há ninguém que a tomar decisões e a fazer escolhas, é estar a mentir. Assim, a voz off do filme, gravada também a dois, não é um comentário acima e sobre as imagens, mas sim um reflectir sobre o nosso diálogo com essa realidade.
Nesse sentido, esta nova voz off é por um lado mais “modesta” que a da versão anterior, no sentido em que não pretende fazer análises ou tirar conclusões sobre os factos, mas por outro lado, mais próxima da dinâmica desse ano de filmagens.

Daí eu sugerir o uso desta expressão um bocado americana da prequela…

Talvez o Rabo de Peixe possa ser visto como uma prequela do E Agora?, no sentido em que não nos excluímos, antes pelo contrário, da ação. Mas a nossa presença é muito mais discreta. O E Agora é basicamente um filme que cobre o período na nossa vida no continente e este filme foca sobre um outro momento da nossa vida, que é referido no E Agora…

Quando ainda estavam nos Açores…

Nós viemos dos Açores em 2007, quando as minhas complicações do fígado se agravaram e já não era possível fazer constantes viagens a Lisboa para ir ao hospital. Sta. Maria nem sequer tem hospital, só tem um centro de saúde. Voltar foi uma decisão muito rápida, que coincidiu também com a possibilidade de ser admitido e seguido em Madrid. Aconteceu numa altura em que tínhamos um projeto de uma vida tranquilo nos Açores, e obrigou-nos a recomeçar no continente.


Rabo de Peixe

Já agora aproveito até para perguntar, como estão os problemas de fígado? Ultrapassados?

Quanto à hepatite C, o tratamento que fiz em Madrid funcionou, ao contrário das tentativas anteriores com tratamentos convencionais. Mais uma coincidência entre o Rabo de Peixe e o E Agora?; durante o ano de rodagem do Rabo de Peixe fiz a primeira tentativa de tratamento de um ano, em regime de ensaio clínico, com interferão e ribavirina.

O tal tratamento experimental em Espanha valeu a pena?…

Sim. Todo repetido análises e é muito pouco provável que a situação regrida. Como eu estava com uma cirrose, à medida que se ultrapassa a hepatite C, o fígado aos poucos vai-se regenerando. Não terei um fígado novo, mas estou bastante melhor do que estava na altura.

No E Agora? Lembra-me viveram precisamente todo esse processo…

Sim, começámos a rodagem com o início do tratamento em Madrid e acabámos no final do tratamento. Sem ter ainda a certeza do resultado final, pois a resposta conclusiva chega com as análises ao fim de seis meses.

Foi um mau bocado, Joaquim…

Foi um muito mau bocado.

Qual foi exatamente o tratamento?

O tratamento que fiz era a primeira geração dos antivirais dirigidos directamente ao VHC. Fiz o Boceprevir, que tal como o Telaprevir, era ministrado em combinação com o Interferão e Ribavirina, com efeitos secundários muito fortes. Eram tratamentos muito tóxicos. O medicamento mais recente, agora em discussão, já não precisa dos outros. É mais leve, a duração é mais curta (dependendo dos casos, de três a seis meses), e as taxas de sucesso são muito superiores. No dia em que cheguei a Berlim, depois das ações de vários doentes e organizações, li que o Ministro da Saúde anunciou um acordo com os laboratórios e que vão começar a tratar as pessoas.

E o Nuno como é que está?

O Nuno está a um passo da cirrose e a precisar do tratamento. Não sei como serão estabelecidas as prioridades no acesso à medicação, mas espero sinceramente que as coisas se desbloqueiem.

Ao longo deste processo doloroso, e enquanto cineasta, sentes que alguma coisa em ti mudou? Em ti e no Nuno, já se vê. A forma como encaram o mundo?

Nunca nos encaramos como profissionais do cinema. Somos amadores, no sentido de alguém que ama o que faz. Fizemos várias coisas na vida. Fiz som de filmes, produzi; o Nuno fez tudo e mais alguma coisa; eletricista, decorador, animador, bombeiro… Na ideia de reflorestarmos um grande espaço com espécies autóctones e de sermos auto-suficientes em termos alimentares, ambos completámos cursos de horticultura nos Açores. Os nossos colegas eram agricultores que necessitavam dessa formação para concorrerem a projetos comunitários. Conhecemos assim esse outro lado dos Açores, e também a distância que vai do ensino oficial à experiência acumulada na prática de gerações ligadas à terra.

Quando sentimos que alguma coisa nos toca, fazemo-la. Não creio que a nossa visão tenha mudado. Se calhar, a maneira de trabalhar mudou desde que trabalhamos juntos. Não diria de maneira diferente, mas com influências diferentes. E o facto de trabalharmos em conjunto tem esse lado desafiante, fazermos propostas um ao outro. O resultado acaba por nascer desse diálogo, não só entre nós mas entre nós e o mundo. No caso deste filme, entre nós e esses pescadores de Rabo de Peixe. Não sabemos fazer filmes a partir de um guião totalmente escrito.

Após alguns anos sem filmar e após estes dois projetos, bem como a reabilitação da saúde, sentes que haverá agora mais uma atividade cinematográfica maior?

Não faço ideia do que vai acontecer. Temos projetos e ideias. Muito sinceramente, tenho a sensação de que o cinema português, pelo menos no que diz respeito aos financiamentos oficiais, não é insensível a grupos de interesses. Estamos longe desses processos e não temos seguido os detalhes, mas por exemplo as polémicas em torno das escolhas de júris para o ICA e as questões levantadas pela Associação Portuguesa de Realizadores são indicativas desse mal-estar.


Joaquim Pinto e Pedro Moritz na apresentação em Berlim de Rabo de Peixe

Em termos de decisões?

O ICA pode ter a melhor das intenções, mas no contexto da lei em vigor está de certa forma manietado e pouco pode fazer para equilibrar a situação, uma vez que lhe foi retirada a função de nomear os júris dos concursos.

Se fizeres as contas, desde que eu e o Nuno começámos a filmar, se somarmos tudo – e já lá vão uns 15 filmes, talvez – tivemos menos apoios públicos do que o subsídio atribuído a uma única longa metragem recente de ficção portuguesa, como por exemplo um dos últimos filmes do António Pedro Vasconcelos, do Edgar Pêra ou do João Botelho. Não sei o que vai acontecer. Felizmente, conseguimos filmar com poucos meios.

Aliás, a resposta do cinema português parece ser um bocado essa, destacando o lado artífice do cineasta e do engenheiro da produção.

Talvez isso se possa aplicar em relação a algum cinema português que passa em festivais e obtém reconhecimento internacional. Não há uma relação direta entre o custo dos filmes e o seu percurso internacional, quer em festivais, quer em salas comerciais internacionais. Há por exemplo um filme recente que merece ser analisado como um caso de estudo, o Cavalo Dinheiro do Pedro Costa, produzido com um orçamento mínimo e que é já considerado como uma referencia mundial no cinema de autor de 2014. Infelizmente, uma boa parte do cinema português que se pretende “comercial” não passa de Badajoz. Esse, sim, fica caro ao estado.

É o cinema comercial que temos…

Para esse cinema “comercial”, que se pretende rentabilizar nas salas, no meu entender, faria sentido um sistema de avanço sobre receitas. Se há pessoas que fazem cinema com o intuito de conseguirem grandes sucessos comerciais, um avanço do estado seria importante para desbloquear e fazer avançar a produção, mas não seria lógico que os lucros fossem devolvidos e permitissem concretizar projetos mais relevantes do ponto de vista artístico? Caso contrário, corremos o risco de estar a distorcer o mercado e a subsidiar indiretamente uma indústria. Aplicando a mesma lógica a outros sectores, porque não subsidiar os discos do Tony Carreira ou os livros do José Eduardo dos Santos?

Mas têm um novo projeto?

Temos um projeto em mãos que apresentámos no último concurso do ano passado.

Em que fase está?

Estamos a trabalhar nele, e certamente a próxima versão será diferente. Não consideramos que um filme, ou um guião, esteja terminado antes da obra estar concluída. Foi recusado nesse concurso. Na classificação dos realizadores, que conta em 50% para a avaliação do projeto, fiquei em penúltimo lugar. Isto quando os critérios definidos por lei são ‘obras realizadas’, ‘participações em festivais’ e ‘relevância em termos de prémios’. Todas as longas que eu fiz foram seleccionadas para festivais de classe A. Contestei a decisão, subiram-me um pouco na escala, mas continuo sem entender os critérios utilizados por esse júri. Até onde vai a subjetividade? Nem sei se isto é assunto para entrevista…

É assunto, sim…

Vamos tentar avançar com as nossas ideias.

Esse novo projeto é material de documento ou de ficção?

Se perguntarem se o E Agora? é um projeto de documentário ou de ficção, não saberei dizer. Posso sim, dizer que obteve um apoio do ICA para documentário, um valor muito inferior ao de uma ficção. Quando o festival de Locarno apresentou o filme em competição, não se pôs essa questão. Gostaram do filme e convidaram-no. Histórias para contar, há em toda a parte. Sejam “verdadeiras” ou “inventadas”. São histórias. Mas estamos a filmar vários testes, temos experimentado coisas. Posso no entanto adiantar que será inspirado em personagens reais.

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