Quarta-feira, 24 Abril

Kléber Mendonça Filho: “sinto muita pressão depois do Som ao Redor”

Quase três anos já se passaram desde que O Som ao Redor, primeiro trabalho do cineasta Kléber Mendonça Filho, estreou no festival de cinema de Roterdão. Depois de um ano a circular pelo mundo, que inclui uma passagem por Locarno, o filme surgiu no circuito comercial brasileiro em janeiro de 2013, beneficiando do enorme hype gerado pela crítica internacional.

O resultado, para além de elogios generalizados e da escolha da obra para representar o Brasil na corrida aos Oscars de Melhor Filme em Língua Estrangeira, foi um retorno significativo em termos de público algo, de resto, completamente inesperado. Neste mesmo ano, a obra passou pelo IndieLisboa e, na última edição do Lisbon & Estoril Film Festival, terminado há duas semanas, Kléber Mendonça teve a mostra completa das suas obras – que inclui curtas-metragens e o documentário Críticos.

Presente em Lisboa para a retrospetiva, o cineasta conversou com o C7nema, onde refletiu sobre o impacte que este sucesso está a ter na elaboração dos novos projetos, que inclui um chamado Aquarius e outro, no cinema de géneros, intitulado Bacurau – numa raríssima investida de um realizador brasileiro no universo da ficção científica.

Houve ainda tempo para uma análise do vigoroso panorama cinematográfico do estado brasileiro de Pernambuco, no Nordeste. Acompanhando o surgimento do manguebeat, movimento musical caracterizado por intensa criatividade aliado a sucesso comercial, aparece em 1996 Baile Perfumado, filme que inaugura o novo cinema sediado em Recife e vigoroso até os dias de hoje – como demonstram o sucesso local e internacional de nomes como Marcelo Gomes, Cláudio Assis, Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, entre outros.

Em primeiro lugar, de onde vem todo esse vigor criativo do cinema de Pernambuco?

Em 2004 fiz uma entrevista rápida ao Tony Wilson, da Factory, no Festival de Cannes. Wilson esteve, entre outros projetos, por trás do Joy Division e estava lá para a apresentação de 24 Hour Party People, que abordava a grande força do movimento musical de Manchester. E fiz justamente essa mesma pergunta. Ele disse que há uma tendência natural e orgânica de cidades que não são centros, que são periféricas, mas que são grandes, como Manchester, Seattle, Recife, de desenvolver uma reação forte e artística para mostrar energia e força.

Em Recife a música sempre foi forte…

Exatamente. Eu acho muito boa essa ideia dele e acho que isso se aplica a Recife. Nos anos 90 a música explodiu e puxou realizadores que na época ainda estavam se organizando… Foi a altura de Chico Science, Mestre Ambrósio, Mundo Livre… Foi um momento muito forte. Isso puxou jovens realizadores. Eu na época, por exemplo, fiz videoclips.

O próprio Baile Perfumado, primeiro destes filmes da nova geração, tinha muita música. Depois veio o cinema e, desde o início da década passada, não deixou de se fortalecer. O que posso dizer é que Pernambuco tem uma base cultural muito forte. Todo mundo enxerga isso no Brasil. Ninguém sabe realmente decifrar, mas existe uma base muito forte também na literatura e nas artes plásticas. E o cinema, nos últimos 15 anos, tem-se destacado muito. No Rio de Janeiro, por exemplo, atualmente está muito diluído, muito desorganizado. Eles olham muito para Pernambuco com alguma admiração, o que é muito bonito.

Eu ia mesmo perguntar isso… Depois do sucesso de O Som ao Redor pensou em mudar para o eixo Rio-São Paulo?

A época de fazer isso era os anos 90. Hoje o apoio financeiro aos projetos cinematográficos é mais generoso em Pernambuco do que em outros estados. Ele se libertou completamente com a revolução digital. Nos anos 90 para fazer um filme tínhamos que trazer técnicos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Era muito caro e inviável. Hoje você consegue fazer um filme inteiro, do início ao fim, em Pernambuco. E no último ano surgiu um laboratório fantástico que nos permite fazer mesmo tudo lá. Hoje temos um orçamento de 3 milhões de euros por ano para cinema. Virou lei, não é mais uma ideia de um governador, é lei. É algo para continuar.

E no exterior, pensa em fazer filmes fora? Nos últimos anos alguns realizadores brasileiros têm ido para Hollywood… Consegue se ver dentro a trabalhar dentro deste tipo de modelo, onde o produtor é que manda?

Sim, sou muito aberto, quero ter muitas experiências de cinema. Para o meu próximo filme já existem conversas para trabalhar na Europa – em França, por exemplo. Ou mesmo aqui em Lisboa. Mas, ao mesmo tempo, se conseguir me bastar com o dinheiro de lá, eu prefiro.

Fez um filme no seu bairro, você gosta é de Recife…

Não, eu faria um filme fora, sem problema. Aquarius será em Recife, mas Bacurau é no interior.

Imagino que não queira falar muito disto, mas o que pode adiantar sobre estes projetos? Serão muito diferentes do Som ao Redor?

Aquarius é mais próximo. Ele lida com espaço, é sobre uma viúva, de 60 anos, que é a última moradora de um prédio que já foi quase todo comprado por uma construtora e só resta ela a viver lá. Eles querem que saia, mas ela não é nenhuma “coitadinha”, é rica. E aí o filme é uma guerra fria entre ela e a construtora. Já o Bacurau é um filme de género, uma ficção científica.

Que quer dizer esse nome?

O “bacurau” é o último ônibus (autocarro) da noite, uma gíria de Recife.

Depois deste hype todo em torno de O Som ao Redor sente algum tipo de pressão na organização dos seus novos projetos?

Eu sinto muita pressão, mas eu espero que ela não me afete. Para mim é muito importante ter uma relação muito forte e íntima com o meu filme. Sempre falo com os meus amigos que é preciso ter uma relação forte o suficiente com os meus filmes para que, se um deles assistir e não gostar, eu possa dizer ‘você é feio (risos). Eu gosto, se você não gosta o problema é consigo’ (risos). Eu sei que é arrogante, mas tenho que ter isso, ou seja, tenho que trabalhar o suficiente no projeto para ter certeza de que esse é filme que quero fazer. O problema é quando querem apressar-te, por diversas razões. No caso do Som ao Redor, eu esgotei o filme, passei um ano e três meses trabalhando nele.

Não perguntei muito sobre o filme porque ele já tem três anos e você já deve estar farto de responder isso, mas uma das coisas que continua a fascinar nele é a montagem sonora. Isso veio da evolução do seu trabalho anterior ou de algumas influências específicas dos teus realizadores favoritos, por exemplo?

É muito orgânico, veio do próprio filme. Ele é que me pede coisas. Eu estou precisando de um som aqui – ‘ah, é verdade’. Eu acho que você constrói uma obra racionalmente até um certo ponto, a partir dali é o filme que lhe pede. Por exemplo, a divisão em capítulos não estava no argumento. Foi o filme que pediu. Às vezes tinham uns câmbios de marcha meio abruptos e sem os capítulos, mas com eles a narrativa ficou mais suave.

Há uma influência do cinema estilo mosaico, não?

Na verdade eu tentei fugir deste cinema. Eu tinha muito medo do filme ser comparado com o Colisão, por exemplo, que detesto (risos). Embora, no caso do Magnólia, por outro lado, eu acho que é um filme que tem coisas muito boas…

E há o Short Cuts

Sim, o Short Cuts também. Mais eu não ficaria muito satisfeito de ter um filme colocado na mesma prateleira. Mas estes filmes, por exemplo, têm personagens de vários lugares. O Som ao Redor passa-se numa rua. Um personagem aparece, conversa com outro e aí a história passa para esse e assim por diante. Eu acho que consegui fugir um pouco. Há pouquíssimas instâncias onde alguém mencionou isso e eu fiquei muito feliz com o facto.

Sério? Então eu apareci para estragar tudo… (risos)

Não, ele não deixa de ser um filme coral…

Uma vez fiz essa pergunta ao Cláudio Assis sobre o Amarelo Manga e ele também ficou um pouco reticente…

Bom, acho que ambos são filmes corais, mas há diferentes maneiras de fazer isso. O Babel, por exemplo… Mostra uma mulher na Tunísia, outra em Los Angeles, uma terceira no Japão… Acho isso muito sem graça. O que parece que o filme está a dizer é ‘o mundo é um lugar cheio de pessoas’. Wow. (risos).

Também não gosta do Amor Cão?

Não, mas já gosto mais, pelo menos tem uma energia de que eu gosto. Mas é excessivamente organizado. O Som ao Redor também é um filme pensado, mas deixa várias pontas soltas, o que eu acho fundamental. A ideia é trabalhar a vida. O problema é que muitos filmes pegam a vida e organizam dentro da lógica do cinema.

Existem ali situações em que os atores não parecem estar a representar sequer…

Sim. Por exemplo, existe um casal que se apaixona no filme e no final ele está falando com um primo e diz que ‘a gente acabou’. Num outro tipo de filme você teria que mostrar porque acabou etc. Aqui você tem a lógica da vida. Na cena em que as duas mulheres brigam muita gente fica incomodada com isso. ‘Mas por que elas brigaram’? Não sei. Não tem que explicar tudo, é a lógica da vida representada dentro do filme.

 

 

 

 

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