Quinta-feira, 18 Abril

AmadoraBD: O que reserva o futuro para a Banda Desenhada? Uma entrevista com Luís Salvado

Entre os principais temas debatidos na AmadoraBD, encerrada no último domingo (09/11), encontram-se aqueles relacionados à exposição Galáxia XXI: O Futura da Banda Desenhada É Agora, uma mostra que teve a curadoria de Luís Salvado e Sara Figueiredo Costa. Nela foram propostas várias questões relacionadas ao passado e ao futuro da BD – principalmente no que se refere aos novos formatos e à evolução da tecnologia – assim como a eventual democratização do mercado com a realidade da internet. O C7nema conversou com Luís Salvado sobre estes assuntos…

Os suportes digitais estão a tornar obsoletos os meios tradicionais na música e no cinema. Por que acha que esse fenómeno não se repete no caso dos livros e da BD, onde existe uma convivência entre o novo e o antigo?

É uma questão complexa mas, resumidamente, a chegada a sério dos suportes digitais ao mundo dos livros (e dentro destes ao da BD) operou-se depois da chegada dos mesmos ao universo da música e do cinema. Porque se nos primeiros dois casos a transição era mais fácil (a pirataria era simples e os modos de consumo não eram assim tão diferentes), no caso da literatura a coisa só se desenvolveu quando se criaram suportes portáteis de leitura, nomeadamente os iPads.

Sempre se disse que o contacto com o papel era único e nunca seria substituído, mas isso não é um dado genético e o apelo físico do livro poderá ser geracional, daí que o futuro seja realmente imprevisível. Mas a história tem-nos ensinado que há uma tendência, nestas áreas, para os modelos de consumo conviverem no tempo. E na BD já se vai assistindo ao consumo de periódicos (nomeadamente os comic-books) em plataformas digitais, com os leitores a comprarem depois em papel os arcos encadernados das séries de que mais gostam.

Isso em Portugal ainda é residual mas é possível que chegue rapidamente. Além disso, as grandes editoras de BD, alertadas para o colapso da indústria discográfica e para os problemas que a do cinema vai enfrentando, começaram a enfrentar de frente o fenómeno e a disponibilizar conteúdos nas novas plataformas, optando por ter um lucro talvez menor que o de outrora mas travando um pouco a hemorragia de consumidores. Ao mesmo tempo, pequenas editoras apaixonadas pelas técnicas tradicionais de impressão optaram por ir contra a corrente e fazer edições limitadas de autor, recuperando velhas máquinas e métodos antigos, e conseguindo um nicho apreciável de leitores.

Há uma sessão da exposição Galáxia XXI que fala em “Regresso às origens: tinta no papel”. Este fenómeno verifica-se na produção de BD nos dias de hoje?

Sim, geralmente por duas ordens de razões, que por vezes se cruzam. Por um lado, porque há um fascínio pelo uso de métodos mais tradicionais de impressão e produção, que permitem também dar um cunho mais individualizado e menos industrial a uma série de livros e publicações, que assim se tornam mais apelativos a uma determinada faixa de leitores. O colectivo francês Dernier Cri (foto abaixo) é um bom exemplo isto, com livros impressos em serigrafia, um de cada vez, o que faz com que cada um seja diferente de todos os outros, tornando cada edição mais preciosa para o leitor.

Por outro lado, porque a pura e simples questão financeira ainda pesa em diversos contextos. Um dos exemplos usado na exposição é o das chamadas cartoneras, editoras criadas nas comunidades desfavorecidas da América do Sul, que usam os muitos quilos de papel e cartões deitados para o lixo para a criação de publicações de livros (de BD e não só), envolvendo nesse trabalho pessoas com menos posses que recebem assim uma remuneração e até se envolvem por vezes no próprio trabalho editorial.

Acha que a internet apresenta-se como um meio realmente democratizador em termos de produção e distribuição de BD? Acha que, no caso da BD portuguesa, existe algum impacto neste sentido?

A internet será democratizadora no sentido em que, por um lado, dá a qualquer autor em qualquer ponto do mundo uma janela comum e global onde dar a conhecer o seu trabalho. Em teoria, um editor em Nova Iorque pode ver com igual facilidade um trabalho de um criador da cidade ao lado que de um autor de Angola ou do Dubai. Claro que há milhões de janelas disponíveis e milhões de trabalhos a merecer atenção, mas a oportunidade está lá, quando antes era impossível.

Por outro, permite que autores de todo o mundo possam cumprir o sonho de trabalhar para editores de outros países sem sair da sua terra natal. Em Portugal, nos últimos cinco anos cumpriu-se o sonho que muitos jovens tiveram nos últimos 30: trabalhar para os gigantes norte-americanos, nomeadamente da Marvel e DC. Nomes como Filipe Andrade, Jorge Coelho, Nuno Plati ou Daniel Maia são exemplo disso, mas estão longe de ser os únicos e o número cresce a cada dia.

De resto, hoje em dia, se um jovem de uma aldeia de Trás-os-Montes quiser ver o seu trabalho publicado num fanzine ou numa revista editada em Lisboa, pode facilmente enviar mostras do seu trabalho por e-mail diretamente ao editor da publicação e, se a coisa correr bem, entrar por essa via em diálogo direto com o responsável, o que antes seria completamente inviável.

A exposição também apresenta Japão e Estados Unidos como os grandes líderes mundiais na produção e na distribuição – restando um pequeno papel para o núcleo franco-belga. Como analisa essa primazia?

O núcleo franco-belga não terá um pequeno papel, porque a produção desse eixo continua a ser esmagadora, embora em menores dimensões que a dos EUA e Japão. O que quisemos sublinhar com a divisão dessas três grandes potências é que, nas últimas duas décadas, os EUA e o Japão são os países que conseguem efetivamente internacionalizar a sua produção e marcar definitivamente a BD que se lê e se faz por todo o mundo. 

O eixo franco-belga, que teve essa capacidade entre as décadas de 50 e 80, foi perdendo um pouco essa virtude por várias razões, nomeadamente a da perda de influência da língua e da cultura francesa no mundo. Hoje em dia é mais fácil uma BD francesa ter impacto em todo o planeta impulsionada pela tradução em inglês e publicação nos EUA que pelos seus próprios meios.

Uma ideia recorrente da exposição Galáxia XXI é a de que o futuro já chegou e não é uma ideia distante… Mesmo assim, é possível antecipar novidades nos rumos da BD ainda não inteiramente perceptíveis ou tornado prática comum?

Essa pergunta é difícil, porque o futuro tem reservado sempre surpresas mesmo aos analistas mais informados. Basta ver, por exemplo, que a explosão da internet mudou tudo em todo o lado, e é uma realidade que praticamente nenhum livro ou filme de ficção científica antecipou. Mas o que temos assistido é a uma riqueza cada vez maior na oferta, tanto de títulos novos como na reedição com qualidade de clássicos, que a fragmentação de públicos e a acessibilidade cada vez maior às obras permite.

O futuro provavelmente vai ser uma convivência dos vários formatos de publicação e edição do passado (e do presente) com alguma inovação que ainda não estamos a vislumbrar, e que provavelmente nenhum de nós soube prever. Mas quase de certeza que continuaremos a ler histórias imagem a imagem, numa folha de papel ou num qualquer ecrã, e que o que conta na nossa paixão por elas será o mesmo de há 100 ou 150 anos: a forma como elas nos fazem despertar emoções, rir, chorar, sonhar e pensar, e a via como elas espelham aquilo que somos e aquilo que queremos ser. E isso em nada depende da tecnologia…

Notícias