Quinta-feira, 28 Março

AmadoraBD: zombies, bruxas e o Estado Novo – entrevista com Nuno Duarte e Joana Afonso

A longa ditadura de António Oliveira Salazar oferece um terreno propício para uma exploração artística com elementos terroríficos. E é precisamente isso que fez o argumentista Nuno Duarte na banda desenhada O Baile, obra que conta a história de um inspetor da Pide que vai parar aos confins de Portugal para investigar o aparecimento de mortos-vivos e onde ainda presencia uma caça às bruxas…

Ilustrada por Joana Afonso, premiada na AmadoraBD do ano passado por este trabalho, O Baile já tem-se tornado, inclusive, objeto de interesse fora do país. Em conversa com o C7nema, os autores falaram sobre a história portuguesa, as suas opções artísticas e o futuro da banda desenhada em Portugal.

Nuno, quando é que achou que o período do Estado Novo era adequado para uma história de zombies? De que forma acha que esse imaginário, o dos mortos-vivos, se enquadra neste período da história portuguesa?

Nuno Duarte: o estabelecimento da trama de O Baile no período do Estado Novo prende-se com o clima de suspeição, dos silêncios e murmúrios de quem nunca sabia o que podia confessar sentir, algo que faz absoluto sentido numa narrativa movida pela necessidade de manter os acontecimentos sob o manto do secretismo.

O uso dos mortos-vivos ganha aqui dois níveis. Em primeiro lugar, o de resgatar um imaginário muito nacional dos mortos que ficaram na faina mas que na mente de muitos poderão regressar a qualquer momento, para o melhor ou para o pior. Numa outra aceção, porém, o terrível período obscurantista e de repressão intelectual a que o Estado Novo obrigou levou a que, inclusive a ficção e o terror, fossem géneros bastante reprimidos, havendo uma quase ausência de criação nacional. Logo, esta é a minha forma de criar a título póstumo uma temática que podia muito bem ter sido explorada na época.

Joana, como foi o trabalho de criação visual para essa história? Por que escolheu o tom castanho como predominante?

Joana Afonso: existem vários tons dominantes ao longo do livro que vão desde o esverdeado ao vermelho. Estes tons pareceram-me os mais indicados para traduzir o universo que o Nuno Duarte criou neste guião, visto ter de criar zombies e, simultaneamente, populações mais rurais. O Nuno por vezes também especificava tons particulares para caracterizar determinados ambientes e claro que esses tons acabaram também por influenciar o resto. Por exemplo, ele refere-se, logo na primeira sinopse que recebi, aos tons de tijolo que vão marcando determinados cenários do livro.

Existem muitas histórias para serem contadas se tivermos em conta a história portuguesa. Estão desenvolvendo mais alguma neste momento? E, já agora, em que projetos estão a trabalhar?

Nuno Duarte: sendo que a minha profissão se prende com a escrita de guiões para TV, cinema e outros meios, considero que temos um potencial narrativo nacional pouco explorado e que é passível de interessar até lá fora, como está a provar o interesse em O Baile e a Fórmula da Felicidade o meu trabalho anterior em banda desenhada.

Em termos de BD propriamente dita, estou neste momento a escrever dois novos guiões que conto desenvolver com a Editora Kingpin Books no próximo ano. Portanto diria que mantenho uma produção contínua neste campo, apesar das vicissitudes inerentes à falta de mercado.

Joana Afonso: acabei de lançar o meu primeiro projeto a solo intitulado Deixa-me Entrar, publicado pela Polvo. Foi um livro em que me aventurei a também fazer o argumento e que foi particularmente reconfortante pois, pela primeira vez, pude conciliar a parte do desenho e da história. O Deixa-me Entrar é um livro autónomo, mas também faz parte da minha dissertação de mestrado, e é exatamente isso ao qual me estou a dedicar neste momento.

Como vêem o futuro da banda desenhada em Portugal em termos de produção e distribuição? Acham que a internet pode ser um meio de democratização em termos de distribuição?

Joana Afonso: o futuro de qualquer área está intimamente ligado à qualidade das pessoas que trabalham nessa área e o que posso dizer nesse sentido é que tenho assistido a um grande número de autores portugueses que, cada vez mais, traduzem o esforço de fazer a BD portuguesa cada vez melhor. Nesse sentido, como plataforma inicial, a internet pode desempenhar um papel importante na divulgação desses autores.

Nuno Duarte: apesar da BD ser um nicho no segmento cultural já de si diminuto da edição nacional, creio que estamos a viver um período de franco desenvolvimento qualitativo, já que novos autores têm vindo a surgir com obras de uma qualidade impressionante.

Apesar de tudo não vejo surgir no horizonte um projeto editorial de grande formato que pegue neste talento, que continuará a publicar por pequenas editoras que compensam a sua falta de tamanho com o extremo cuidado que põem nas suas edições.

A internet neste caso poderá ser sobretudo uma porta de entrada noutros mercados, mas aí sob o custo de termos que abdicar da nossa língua, o que não deixa de causar um sentimento ambivalente.

Quais são os vossos artistas preferidos? Existem alguns que influenciaram de forma mais direta a concretização de O Baile?

Joana Afonso: N’O Baile, em termos de influências diretas, elas são reduzidas. Existem, sim, algumas influências que naturalmente me inspiram em termos de desenho. Não gosto muito de citar nomes específicos, pois cada um tem a sua importância, mas são notórias as influências de alguns autores franco-belgas.

Nuno Duarte: Pessoalmente deixo-me inspirar por artistas de vários ramos e influências quando escrevo, algo que muda consoante a época ou o projeto que desenvolvo. Diria que na concretização de O Baile tive presente a escrita de autores como Neil Gaiman, Quentin Tarantino e Grant Morrison, os filmes de gente como Michel Gondry, Sam Peckinpah e Bong Joon-Ho, ou ainda a música dos Dead Combo, Mundo Cão e Jorge Palma.

 

 

 

Notícias