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«Falta ao cinema português honestidade intelectual.» Entrevista com Tiago Santos

Como se constrói um argumento? Numa cinematografia onde a arte da storytelling é (infelizmente) tão negligenciada, o que de certa forma justifica um cinema português tão distanciado do público, o C7nema conversou com Tiago Santos, argumentista de Os Gatos não Têm Vertigens – naquela que é a sua terceira colaboração com António-Pedro Vasconcelos (além de Call Girl e A Bela e o Paparazzo).

Para além de revelar o seu processo criativo e de criticar certas opções que ainda se tomam no cinema português – entre as quais duras críticas aos critérios do ICA para escolher projetos para financar – ele falou ainda sobre o seu novo trabalho, o remake do clássico O Leão da Estrela

Os Gatos não Tem Vertigens tem a sua história sustentada por dois personagens de origens muito diferentes, o que implica na construção de backgrounds muito distintos. Como funcionou o processo de construção?

O processo de construção das personagens varia um bocado de um filme para outro. Neste caso houve uma altura em que eu e o António-Pedro andávamos a tentar descobrir um projeto para trabalhar. Sabíamos que queríamos trabalhar juntos outra vez e andávamos a procura de uma história.

Houve uma ou outra tentativa falhada, histórias que não davam, que víamos que não tinham grande futuro. O Tino Navarro (produtor) também nos dava alguns feedbacks. Então uma amiga contou-me uma história de uma senhora que descobriu que estava um puto marginal a viver no terraço dela e ela não chamou a polícia e ele ficou sob os seus cuidados. O António-Pedro também tinha uma história parecida de uma amiga que tinha um miúdo a entrar em casa dela. A policia chamou-a a dizer-lhe que esta lá alguém a viver mas quando ela foi lá gostou do que ele tinha feito na decoração e não quis apresentar queixa.

Foi quando surgiu a premissa da história, da senhora que descobre um miúdo a viver no terraço e, em vez de chamar a polícia, começa a desenvolver uma relação de amizade. Então o nosso trabalho foi tentar descobrir porque é que ela não chama a polícia e como é que ele chega aquele terraço.

Começamos a construir a história para trás, para que, quando chegássemos àquele ponto, as coisas fizessem sentido. Então começamos a desenvolver as personagens, o rapaz tinha que ser um miúdo que é abandonado. E por que ele é abandonado? A mãe arranjou outro marido e ele exigiu que ela se afastasse da família. O pai é alcoólico. Não está no filme mas estabelecemos um background para o pai, sabemos porque ele é alcoólico.

E ela, por que é que esta sozinha? Está abandonada? Está sozinha porque o marido morreu. Fazemos toda essa construção de coisas que, muitas vezes, nem aparecem no filme mas que fazem sentido para quando se chegar ao momento central do filme – em que ela não chama a polícia e ele encontra aquele terraço e não tem ninguém para cuidar dele.

Trabalha normalmente em argumentos originais. Quando é que sente que uma determinada ideia pode resultar em algo?

Acho que há ideias que fazem click. Esta foi ‘Ok, há aqui alguma coisa interessante para explorar’. É sempre complicado em termos de trabalho porque tem de se ter um filme que o António-Pedro queira realizar e tem de ser um argumento que eu queira escrever, pois também não posso estar a investir em algo que não me apetece fazer. Temos de chegar a uma história a qual ambos tenham razão para conta-la.

O cinema é muito conflito e conflito é drama. Tem de haver alguma coisa que faça a história andar para frente e neste caso tínhamos a da senhora de 73 anos que desenvolve uma relação de amizade com um jovem de 18. Já há aí um conflito porque é uma coisa invulgar – podemos pensar ‘o que é que vai acontecer, como é que isto é possível’. Há muita coisa para explorar.

Para o António-Pedro e para mim trata-se do encontra de duas gerações não ativas ou não tão envoltas na máquina económica da nossa sociedade. E daí esta não ter qualquer interesse nelas. Há os velhotes, que são metidos num lar onde se paga para que alguém tome conta deles, e existem os putos de 18 anos que não tem a possibilidade de ter uma escolaridade normal ou não têm uma estrutura familiar forte – e que, assim, também são colocados de lado.

Depois havia o próprio tom da história. O António-Pedro tem de facto a preocupação de fazer um cinema que não seja necessariamente só realismo, mas também um tipo de fábula. Era importante abordar o tema da história num tom que não fosse uma coisa ‘oh, o mundo é horrível e vamos todos morrer sozinhos’. Tinha que ser também a defesa de uma utopia, que se nós olhássemos um bocadinho para o próximo e estendêssemos a mão de vez em quando as coisas podiam ser um menos difíceis de ultrapassar nesta terrível experiencia que é a vida.

Como começou a sua parceria com o António-Pedro Vasconcelos?

Começou em 2007 com o Call Girl. A história conta-se rapidamente. Eu tinha voltado de Nova Iorque, fui para lá como jornalista mas rapidamente desisti e comecei a estudar screenwriting. Foi quando estive lá que escrevi dois argumentos em inglês. Duas longas que poderão nunca ser feitas mas que estão escritas. Quando voltei tinha um amigo que conhecia o António-Pedro. Ele sabia que tinha andado estudar argumento e convidou-nos para almoçar. Depois de ler ele disse que não estava minimamente interessado no projeto mas pagou-nos o almoço, o que foi muito simpático (risos).

Eu tinha outros guiões, tinha um na mochila e dei-lhe para ler para ele ver se eu tinha jeito ou não. Não era um guião completo, era uma bíblia. Eu tinha feito uma construção de personagens, uma sinopse prolongada… Ele leu e gostou e disse que tinha uma ideia para um filme que era o Call Girl e convidou-me para trabalhar com ele. O projeto correspondeu às expectativas dele e a partir dai temos vindo a trabalhar juntos. Tudo graças a um guião que eu escrevi em inglês num café qualquer em Nova Iorque.

O trabalho do argumentista tem um caráter ingrato pois o resultado não depende do seu esforço, mas daquilo que terceiros vão concretizar. Como lida com isso?

É algo que se aprende, ou seja, é complicado porque quando estou a escrever tenho que acreditar no que escrevo, no sentido de que eu sou o meu primeiro espectador. Primeiro escrevo para mim, depois para os outros. Portanto, tenho que gostar do que estou a escrever. Se eu escrever uma cena que eu não gosto não vou entregar, provavelmente.

Mas, por outro lado, quando chega a altura daquilo começar a rodar eu tenho que ter flexibilidade para perceber que eu não sou o realizador, tenho que lhe mostrar e convencê-lo que aquilo funciona. Depois entra em cena o produtor. Por exemplo, nos “Gatos” na primeira versão o personagem do Nicolau Breyner falava com o pote e o Tino Navarro achou que não ia funcionar. ‘É melhor ele falar logo com o fantasma!’ E tinha toda a razão.

Por isso é preciso saber aceitar as ressalvas e saber que batalhas é que tens que lutar – onde deves ou não deves aceitar – estilo ‘não, isso fica melhor como estava’. São discussões criativas, que são necessárias para que o trabalho fique melhor.

No caso dos filmes do António-Pedro e do Tino eu acompanho as filmagens, por simpatia deles – até porque um dia quero também realizar. Claro que estou lá calado, como espectador. Acabo por não ser muito surpreendido pelo que depois vejo, mas tenho que ter sempre a noção de aquilo que eu faço é como se fosse a planta de uma casa que poderá ser alterada conforme a necessidade.

Não me chateia que mudem, eu faço parte de uma equipa. Há coisas que acho que estavam melhores na minha cabeça mas sei que é fácil dizer isso, porque é a minha cabeça. É sempre estranho ver, às vezes é estranho bom e às vezes é estranho mau (risos). Faz parte do processo.

E claro que é interessante ver como aquilo se transforma – a interpretação dos atores, a fotografia… Eu, se quiser ter controlo total daquilo que faço, tenho que ser também produtor, realizador e montador, uma espécie de Robert Rodriguez… Por isso não me identifico tanto quanto essa coisa do autoral, do artista. Eu gosto de escrever guiões, de contar histórias, de criar linhas de diálogo, mas como parte de uma equipa.

O cinema português tem uma tradição muito ligada ao cinema de autor em detrimento de narrativas baseadas na ação. Acha que faz falta esse cinema onde a storytelling é importante?

Eu acho que é fundamental. Antes de começar a escrever filmes eu sentia isso enquanto espectador de cinema. Eu sempre gostei muito de ver filmes e sempre senti que faltava ao cinema português esse meio-termo. Eu acredito no meio-termo, é fundamental.

Em Portugal criou-se essa divisão. Há pessoas que fazem cinema de autor e gostam de dizer que os outros fazem cinema comercial e desprezam isso porque acham que quem contar uma história está a ser condescendente com o público. É uma ideia terrível porque o cinema é o que é hoje porque é uma forma terrivelmente eficaz de contar histórias, de comover as pessoas, de fazê-las rir, de esquecer dos seus problemas. É daí que vem o encanto do cinema e, se ele se tornar uma coisa puramente intelectual, desaparece.

Não estou a dizer que não possa ser também mais intelectual. Eu gosto de filmes que são mais difíceis, que exigem uma entrega intelectual e, principalmente, se forem intelectualmente honestos. Eu acho que falta ao cinema português, sobretudo, honestidade intelectual.

Acha que são pretensiosos?

Há filmes de autor em Portugal que são uma masturbação intelectual. Não são todos, existem alguns bons. São filmes que não têm qualquer interesse em comunicar com o público, que o desprezam. É algo como ‘Eu sou um artista, não me interessa falar com essas pessoas’. Por outro lado, há o outro enfoque, no lado comercial, que acha que o público português nunca viu um filme na vida e come qualquer coisa. Quer um quer o outro estão a desprezar a inteligência do público.

Eu acho fundamental e o que eu tento fazer, e vão haver pessoas a dizer que eu não consigo, é contar uma história que respeite a inteligência do público. Tenho de pensar que os espectadores de hoje já viram muitos filmes na vida e, portanto, não vale a pena estar a ser condescendente com ele. Gosto de contar uma história com a qual eles se identificam.

Depois há outra coisa: todas as guerras e essas rixas devem-se, principalmente, ao facto de não haver dinheiro para filmar. A maior parte das vezes essas discussões nem sequer são sobre estética, mas sobre quem é que vai receber dinheiro para filmar. Eu acho que o cinema português tem que ser uma coisa rica, onde muitas pessoas contem histórias de várias maneiras diferentes. 

E acho que é tão nobre um filme fazer 200 mil espectadores quanto ganhar uma Palma de Ouro em Cannes. Há filmes que são fáceis de ver que são maus e são vistos por 600 pessoas. Isso quer dizer que nem os amigos do realizador vão ver o filme – estilo ‘Olha, gosto muito de ti mas não quero ver o teu filme!’ (risos). Bom, mas se uma pessoa vai pensar nisso fecha o computador e muda de área.

Mas vocês têm conseguido viabilizar o cinema comercial, de certa forma…

Estamos a viabilizar salvo seja. As coisas que se passam no ICA, nas seções especializadas no Audiovisual, são muito feias… É muito feio. É que toda a gente quer o seu bolo e quer só para ele. Como o bolo é pequeno ninguém quer dividir. E não vejo isso mudar com as novas gerações, pois o discurso continua o mesmo.

Tem argumentistas favoritos?

Tenho muitos e o mais engraçado é que a maior parte deles acaba por se tornar realizador. Charlie Kaufman, David Mamet, Robert Towne, Paul Thomas Anderson… Acabam por ser mais referências mais americanas. Mas também gosto muito de cinema europeu, na verdade gosto de todo o tipo de filmes. Os filmes têm uma capacidade enorme de contar histórias. Como a literatura deles, é muito voltada para o storytelling.

Por cá se criou a ideia absurda de que contar histórias é fácil. Não é nada fácil… para além de ser fundamental para uma sociedade, para pensar, refletir sobre ela. Dizer que isso é fácil, comercial, televisiva… como já tenho ouvido, é absurdo. Nem sei o que isso quer dizer, “televisivo”. Dá um trabalho imenso… Só neste caso tivemos dez versões do guião! Havia uma preocupação muito forte para que tudo funcione…

Falou em saltar para a realização. Já tem algo concreto ou é só uma ideia?

É um passo natural, mas ainda não tenho nada de concreto. Ainda quero escrever mais um romance para publicar em 2015.

E tem a direção de atores…

Eu encenei atores no Teatro Rápido. Claro que tenho q encontrar minha voz, minha segurança… E acho que é mais fácil se tens uma compreensão profunda do texto, das personagens. E também há o remake de O Leão da Estrela, que vai ser filmado. Há muitos críticos que já estão a afiar os lápis (risos). Eu acho que nem vão dar uma oportunidade ao filme, existem críticos que antes de ver o filme já escreveram a crítica, depois só preenchem algumas lacunas (risos). Os remakes são feitos em toda a parte.

É curioso, porque na altura eram filmes desprezados.

Exato, isso já se sabe. Não quero tentar copiar nada, quero tentar fazer uma homenagem justa ao espírito destes filmes e dar algo contemporâneo. Aqui, novamente a palavra “honesto” é fundamental. Tem é que ser feito de forma honesta. Se for bem pensada, bem-feita, com humor e inteligência, as pessoas vão querer ver. Como é que isso pode ser mau para o cinema português? Não pode ser mau.

O projeto não foi ideia minha, fui contratado pelo Leonel Vieira e gostei do desafio de fazer um remake. Tenho ideia que vai ter piada. Aliás, se tu pegares o argumento do Leão da Estrela e da Canção de Lisboa, aquilo não faz sentido nenhum!!! (risos). Tinha era boas anedotas, frases bem escritas e atores com um enorme carisma – por isso funcionava. Tenho muita curiosidade de ver o que vai sair daí.