Sexta-feira, 19 Abril

O Último Imperador faz 27 anos: uma entrevista com Vittorio Storaro

Uma dos mais belos épicos de sempre, a obra de Bernardo Bertolucci completou ontem (04/10) 27 anos da sua estreia no Festival Internacional de Tóquio. Para relembrar a data, o C7nema aproveita para postar uma entrevista de cunho histórico com o seu diretor de fotografia, Vittorio Storaro, feita quando da sua passagem por Portugal durante a última Mostra do Cinema Italiano, onde foi homenageado com um prémio de carreira. Na mesma altura, foi apresentada uma versão em 3D do filme.

Um dos maiores artistas desta área em toda a história do cinema, Storaro venceu três Oscars (por Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola (foto abaixo), Reds, de Warren Beatty e o próprio O Último Imperador, para além de ter trabalhado em mais sete filmes de Bertolucci (A Estratégia da Aranha, O Conformista, O Último Tango em Paris, 1900, La Luna, Um Chá no Deserto, O Pequeno Buda), outro de Beatty (Dick Tracy, foto abaixo) e mais dois de Coppola (Do Fundo do Coração, Tucker, um Homem e seu Sonho) – para além de A Mulher Falcão, de Richard Donner.

Na conversa, travada em conjunto com o Rick’s Cinema, ele falou sobre a sua longa parceria com Bertolucci, o seu trabalho em Apocalypse Now e o livro que lançou recentemente, The Art of Cinematography, onde presta uma homenagem aos velhos mestres da área. Para além disto, um dos grandes assuntos não poderia deixar de ser as cada vez mais frequentes polémicas com os Oscars da categoria – atribuído a diretores de fotografia (obras como A Vida de Pi e Gravidade) que na verdade tem um papel bastante reduzido uma vez que grande parte da imagem é gerada em computador. “O Oscar de Avatar é um escândalo!“, diz.

Você tem uma carreira de mais de 50 anos, onde já venceu três Oscars como diretor de fotografia. A sua área tem visto grandes polémicas nos últimos anos em função de filmes como A Vida de Pi e Gravidade terem ganho o prémio da categoria. Christopher Doyle, por exemplo, disse que o Oscar para A Vida de Pi era “um insulto ao cinema”…

É verdade mas, antes de tudo, a culpa é nossa, dos nossos colegas. Isso porque são os cinematógrafos que escolhem os filmes que serão elegíveis para a Academia, para a lista final. Não é alguém não saiba. Só depois das nomeações que é que todos votam em tudo. Aí já não tem a ver com saber o que realmente aconteceu, mas com aquilo que parece mais bonito. Então fiquei surpreendido pela nomeação de A Vida de Pi e Gravidade.

Isso foi o mesmo com Avatar. Aqui o cinematógrafo não fez quase nada. É um escândalo. A beleza visual do Avatar é obra do ilustrador, não do Mauro Fiore (o diretor de fotografia). Foi obra do production designer, o líder da equipa dos desenhadores. O mundo de Avatar é dele, que desenha a produção. Doyle tem razão e gosto muito dele, mas não disse a verdade toda (risos).

O que achou da ideia do 3D em O Último Imperador?

Foi uma necessidade do distribuidor internacional depois do sucesso do Avatar. Isso mudou a estrutura da distribuição internacional no mundo. Não sei se só em função do Avatar, mas já não se produzem filmes em película. A Kodak está falida e as máquinas de filmar são peças de museu. Hoje são câmaras de video digitais, DCPs. Houve um grande boom, onde tudo tinha que ser em 3D, mas foi um pico que não durou muito.

Isso aconteceu porque não houve um grande filme para sustentar o mercado, mas eram sobretudo animações e outros que mais parecem videojogos. Havia necessidade dos grandes clássicos. A tecnologia foi ao encontro desta necessidade, de chamar outra vez o público para estes clássicos. Jeremy Thomas (produtor do filme) viu essa oportunidade. Tenho uma certa curiosidade em ver o resultado final, pois só trabalhei na primeira parte porque estava no Irão.

Está apreensivo?

(Risos) Não, apenas curioso. É um belo filme por isso não acredito que isso se perca. Trata-se de um filme que não poderá ser arruinado. O que interessa é perceber que ele não nasceu assim.

Como conheceu Bernardo Bertolucci e na altura imaginava que teria uma colaboração tão longa e produtiva (oito filmes em 23 anos)?

Nos conhecemos em 1963 enquanto eu era assistente de operador e o Bertolucci trabalhava no seu segundo filme. O que me fascinou na pessoa dele, que na altura era muito jovem, tinha apenas 22 anos (e eu 23), foi a determinação e a vontade de escrever a história com a máquina de filmar.

Houve um período de seis anos a seguir onde não voltamos a nos encontrar mas depois do meu primeiro trabalho como cinematógrafo, em 1968, ele ligou a perguntar se eu queria colaborar, depois de um período no qual ele próprio tinha parado. Uma coisa que me deixou comovido foi que ele se recordava de meu comportamento quando eu era assistente, como alguém que amava aquilo que fazia.

Então me propôs A Estratégia da Aranha, que era um pequeno filme para a televisão italiana. E alcançamos logo uma grande harmonia quando vi que ele se exprimia dizendo as coisas de uma forma consciente e sugerindo outras quase de forma inconsciente. No caso deste filme, houve uma perceção de que o consciente era a luz e o inconsciente era sombra. O casamento foi perfeito e estrada seria longa. Foi o início da nossa colaboração e empatia.

Como é que recorda hoje a aventura do Apocalypse Now?

No início não tinha grande interesse no projeto, mas isso mudou quando Francis Coppola disse-me que não se tratava de um filme de guerra, mas sim sobre o sentido de uma civilização. Ele sugeriu que eu lesse o livro do Joseph Conrad, Heart of Darkness, para perceber o centro da questão, a de uma civilização que se vai sobrepor a outra. Eu temia fazer um filme de guerra mas ali percebi que havia um contexto universal. Este conflito poderia se traduzir na leitura visual através da luz artificial em contraponto à luz natural. A partir desta ideia, todos os esforços foram feitos para concretizá-la…

É isto que hoje digo aos jovens que estudam cinema. Não é só o trabalho de pôr luz aqui ou ali que interessa. Não, sobretudo tem de haver uma ideia para seguirmos em frente a fim de concretizá-la. Aí, sim, vale a pena. Depois deparei com uma obra com um tempo de filmagem longo, rodado muito longe, difícil, complicado, mas ao mesmo tempo maravilhoso.

Quanto tempo ficou nas Filipinas?

Um ano e meio. Começamos as filmagens em 1975 e terminamos em 1977. Depois foram mais dois anos de montagem e o filme só foi lançado em 1979. E não estava terminado! (risos). Depois de Cannes Coppola decidiu mudar qualquer coisa no final. O conceito principal era de rapazes num barco que estão a subir um rio e vão encontrando situações diversas até chegar ao destino. Então houve uma perceção por parte do Coppola de que era muita coisa e ele então começou a cortar – em especial a parte da colónia francesa. Ele pensava que era a única possibilidade do filme ser compreendido.

Depois de 17 anos uma companhia francesa lembrou-se de tentar resgatar a ideia inicial e então surgiu uma versão do realizador (Apocalypse Now Redux, de 2001). As cenas com os franceses e outra com as playgirls voltaram, com mais 54 minutos adicionados. Portanto, de 1975 a 2001 passaram 26 anos… E talvez ainda não tenha acabado! (risos). Ainda pode haver um redux de uma redux (risos).

Mas teve mesmo o ar caótico que aparece no documentário Heart of Darkness?

Não, isso ocorreu mais na parte financeira onde, de facto, as coisas não corriam como num filme normal. A determinação de Francis em manter as equipas de fotografia e cenografia unidas garantiu um ambiente tranquilo.

Por que agora decidiu, a esta altura, escrever um livro a homenagear os mestres da fotografia?

Foi uma questão pessoal. Quando estava nas filmagens de Muhammad (obra de Majid Majidi rodada no Irão que deve ser lançada em 2015) senti esta exigência. Eu me sinto muito afortunado na minha carreira, então senti uma necessidade de homenagear aqueles que me precederam. Não só os cinematógrafos, claro, também os realizadores.

O livro chama-se a A Arte da Cinematografia onde a palavra aqui tem um significado muito preciso. Houve vontade de esclarecer essa palavra pois existe uma grande confusão em todo o mundo. Normalmente dizem “fotografia” de um filme. Mas num filme não é só isso, pois isso tem a ver com a luz – com a escrita da luz, é uma arte que pertence ao fotógrafo. Em inglês chama-se “photography“. No caso do cinema, trata-se de imagens em movimento, portanto “cinematografia”.

A ideia do “diretor de fotografia” foi inventada de forma equivocada pelos norte-americanos em 1949. Por quê? Quando em 1949 surge o Director’s Guild of America os cinematógrafos americanos quiseram também ficar com o nome de “diretor”. Cometeram dois grandes erros, em primeiro lugar porque a organização de uma produção é um pouco como uma orquestra: existem vários solistas, mas apenas um condutor. No cinema existe apenas um diretor. O segundo erro é o “diretor de fotografia” pois a fotografia é ação de uma única pessoa, enquanto a cinematografia envolve várias.

O livro para além de ser um grande obrigado a quem ofereceu emoções é também para sublinhar essas diferenciações. É difícil e demora muito mudar os hábitos!

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