Sexta-feira, 29 Março

Entrevista a Olivier Assayas, o realizador de «Depois de Maio»

«A Revolução portuguesa foi a mais radical na Europa»

Numa altura em que aguardamos em Cannes a exibição do seu ‘ultimo filme Sils Maria, num jogo de interpretação e espelhos entre Juliette Binoche e Kristin Stewart, eis que chegam finalmente, a Portugal Depois de Maio, uma visão muito pessoal sobre os tumultos juvenis revolucionários, do pós Maio de 68, em que não fica alheia sequer uma visão sobre o “estado a que chegámos” hoje. E porque de Revoluções se trata, não falhou sequer a evocação do “nosso” 25 de Abril. Quem, de resto, foi encara em França como uma espécie de “template” de uma revolução modelar. Falámos com Assayas no festival de Veneza de… 2012.

E frisa ainda que a “crítica de cinema continua a ser muito interessante“, segundo ele, “tanto na imprensa como na internet“. Ainda bem…

Porque escolheu para este filme o período imediatamente após a revolução de Maio de não o próprio movimento de 68?

Porque nessa altura eu era ainda demasiado jovem para ser uma testemunha credível. Eu tinha 13 anos em 68 e vivia fora de Paris. Nessa altura vim algumas vezes a Paris e vi algumas coisas, mas era ainda uma criança. Não é portanto algo que pudesse representar. Até porque será extremamente difícil de representar o Maio de 68. Aliás, acho que ninguém o conseguiu fazer. Talvez o Philippe Garrel. Mas ele não fez um grande filme sobre o Maio de 68 (“Os Amantes Regulares“), fez um grande filme do Philippe Garrel. Talvez um dia isso seja feito. No entanto, eu vivi os anos 70 e experimentei várias dimensões. O importante aqui é ver como um mundo à beira do caos afeta os jovens de um liceu de subúrbio.

Quando era jovem costumava sair para os protestos de rua?

Sim, sempre que podia. Isso fazia parte da nossa cultura. Não eram só manifestações, eram também os tumultos. É curioso porque quando estava a reconstituir o tumulto do início de 1971 que se vê no filme, fiquei chocado com o grau de violência empregado. E lembro-me porque, na altura, também tinha medo de andar na rua. Sobretudo quando a polícia andava atrás de nós.

Em todo o caso, imagino que este seja um período em que existem várias imagens de arquivo. Foi fácil fazer essa reconstituição?

Por acaso, foi difícil encontrar imagens de arquivo. Encontrei poucas de manifestações. Na verdade, essa foi uma manifestação que nem aconteceu, porque estava proibida. Os polícias decidiram que ela não iria acontecer. Ao primeiro esboço de concentração, a polícia investia, o que levava tempo para nos reagruparmos. No fundo, eram pequenas lutas de guerrilha.

Estas manifestações foram um marco para a sociedade, e não só em França. Acha que as pessoas ainda se lembram dessa herança?

Sim, foi algo global. Havia um sentido que era um período revolucionário, algo que se começara a construir vários anos antes. Talvez com o advento da geração “baby boom“. Uma geração que se assumiu como portador das revoluções mFrança, sobretudo em Paris. Não era algo abstrato. Existia algo errado com o materialismo da sociedade moderna que tinha de ser questionado e, eventualmente, reposto por algo diferente.

Na altura tinham a ideia de que poderia mudar o mundo?

Sim, claro. Absolutamente. Qualquer jovem ou adolescente estava plenamente convencido que uma revolução iria acontecer. Não era uma interrogação, era um facto. A questão era mais como lidar com ela, como lidar com algo onde outros haviam falhado. Havia fé no futuro, mas as raízes estavam no passado. O que falta hoje é a fé no futuro e o conhecimento do passado.

Em Portugal sucedeu algo semelhante com a nossa revolução em 74, em saímos de uma longa ditadura. Como foi acompanhado esse período em França e que ligações tinham com Portugal?

A revolução portuguesa foi muito importante em termos da política francesa de esquerda. Foi seguramente a revolução mais radical que aconteceu na Europa na altura. Nesse sentido, tinha sido um esboço para as fações mais radicais e foi observada com algum fascínio, pois era o esboço das revoluções do futuro. Todos os grupos radicais em França tinham interesses nos grupos radicais portugueses.

Enquanto realizador o que lhe interessa mais neste filme de época?

É uma dor de cabeça combinar os adereços, a logística, o guarda-roupa. E logo eu que gosto de um cinema leve. Mas quando fazemos um filme de época, temos de ter os carros, temos de filmar na rua, alterar coisas. É um processo dispendioso, complicado, longo. Confesso que tenho cada vez manos paciência para isso…

Felizmente já tinha alguma experiência ao fazer “Carlos”…

Sim, claro. Foi algo que acabei por dominar e controlar quando fiz esse épico. Até porque se passa também nos anos 70. Sinto que acabei por beneficiar disso. Tanto eu como a equipa, que era a mesma.

Não escondeu até uma certa leveza, um certo humor… Foi intencional?

É sempre bom quando as pessoas se riem. Sim, é quase um lado “tongue in cheek” que achei jovial. É claro que não queria ridicularizar os anos 70, mas há algo que já era divertido e continua a ser divertido hoje. Aliás, esse é um período que me fascina em termos cinematográficos. O cinema tem algo de juventude que lhe é essencial, uma certa virgindade.

O filme tem também um lado de cinefilia. Penso que isso é inegável ver influências de Godard, Truffaut, Resnais… Concorda?

Vejamos, é a Nouvelle Vague que está sempre em pano de fundo naquilo que faço. Bem como grande parte do cinema atual. Foram eles que nos mostraram que era possível fazer filmes com a nossa namorada, sobre as nossas próprias experiências, fazer filmes como os impressionistas pintavam. Existe uma mudança metafísica no cinema que acontece desde o início dos anos 60. Isso mudou a cara do cinema. Sim, a influência é enorme. Mas não são apenas esses, é toda uma geração de cineastas “new wave” em todo o mundo.

É interessante a forma como o protagonista descobre o cinema. Talvez como sucedeu consigo, imagino. E como toda a gente pode experimentar. Foi essa a sua experiência também?

Sim, é preciso isso que eu quero dizer. As minhas primeiras experiências no cinema foram com o meu pai (o argumentista Jacques Rémy) que me permitiu fazer algumas coisa em televisão ou assistente de um filme qualquer. Foi assim que comecei a fazer cinema. É claro que estava envolvido na radicalidade desse movimento e acabava por estar nos sets de filmes que me pareciam pertencer a uma outra época. Nesse sentido, é um filme muito pessoal.

O que recorda desses momentos. É verdade que participou até em alguns clássicos?

Sim, estive na sala de montagem de Super-Homem, de 1977, nos estúdios Pinewood, em Londres, quando filmaram o final do planeta Krypton no início do filme, com o Marlon Brando. Foi algo que presenciei com os meus olhos. E no outro set estava o louco Kevin Connor que fazia aqueles filmes loucos série B, como os Os Guerreiros de Atlântida (1978), The Land that Time Forgot (1977), com nazis e dragões…

Uma pergunta pertinente a um cineasta cinéfilo: qual é o seu filme favorito de todos os tempos?

O meu filme favorito seria um qualquer filme de Robert Bresson, qualquer um de Andrei Tarkovsky, e qualquer um de Jean Renoir… (risos) É, digamos assim, a minha Santíssima Trindade (risos).

Como antigo crítico de cinema, como encara a atualidade, com toda esta crise e o desaparecimento das revistas de cinema. Acha que existe um declínio da crítica de cinema?

Acho que a crítica de cinema continua a ser muito interessante. Tanto na imprensa como na internet. Na verdade, também não leio muito, mas o que leio parece-me ter um bom nível. A grande diferença quando eu escrevia era o facto de a teoria de cinema não tinha ainda sido absorvida por todos. E hoje isso já se nota e é ensinado por professores. Mas isso para mim não faz sentido, porque a teoria artística deveria estar ligada à prática, em diálogo com o dia-a-dia da prática do cinema. Acho que se tornou um pouco dogmática.

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