Sexta-feira, 29 Março

«Synonyms» (Sinónimos) por André Gonçalves

Corajoso, destemido, arrojado, irreverente, desinibido. O novo filme de Navid Lapid (responsável pelo original The Kindergarten Teacher) volta a debruçar-se sobre a psique fragilizada de um indivíduo, tentando desta feita obter uma definição para “identidade nacional”.

Um jovem israelita chega a Paris de modo a procurar uma outra identidade, “ser francês”, e a câmara segue-o e à sua bagagem de trás, de uma forma intrusiva. Esta intrusividade, primeiro com uma câmara à mão aos solavancos a filmar de costas este protagonista, eventualmente pára e contempla com ele quando existe um espaço para pernoitar, embora continue a existir um voyeurismo dado que a realização não se inibe de cortar o que vem a seguir. Yoav despe-se, segue para a banheira, masturba-se, e de repente apercebe-se de um barulho, e começa a correr pelos cantos sem imóveis da casa e do prédio, nu, voltando eventualmente “ao conforto” da banheira, e sendo encontrado em estado crítico por dois residentes do prédio que se enamoram por ele.

A partir daqui, o processo é de trocar um passado por um futuro, que é como quem diz, trocar uma identidade cultural por outra, com ajuda de um dicionário francês. A perversidade de Lapid neste ensaio político acaba por ser até dupla ou tripla: não só existe uma crítica feroz, via personagem principal, ao estado israelita, um estado que ajudou inclusive a financiar este filme; como o filme convida eventualmente a reflectir sobre esta mania que temos de querer sempre associar um país de origem, uma fronteira, uma língua, um hino, a um cidadão. Mais audaz ainda, esta mania é facilmente refletida numa França cada vez mais nacionalista e protecionista. Numa aula de francês, Yoav é assim “forçado” a cantar o hino de Israel, falar hebreu, ao mesmo tempo que é convidado a aceitar o que é aceitável atualmente na França em termos de direitos sociais em termos de afirmações verdadeiro/falso – feminismo, direitos LGBT, laicicidade, etc. e a saber cantar o hino nacional francês. Toda esta transição acaba por frisar uma certa constância nesta mudança de nacionalidade, na prática – Israel ou França, estamos a lidar com territórios que usaram no passado ou no presente a força para mostrar a sua hegemonia. A promessa de um estado liberal sobre um outro mais opressor é sempre temporária, assim…

Voltando ao cinema, é curioso pensar que esta transição por fragmentos se traduz num argumento que aparenta dar saltos no tempo sem qualquer aviso, como se tudo isto se tratasse de histórias contadas de alguém no futuro – falso defeito a apontar, já agora. A realização essa é feita em dois modos, já descritos acima: câmara desorientada aos solavancos, câmara mais fixa – a primeira usada para acompanhar um processo de deriva, de fuga entre dois pontos, sendo que o segundo ponto se possa tornar aleatório. As referências abundam, indo até a outras formas de arte (escultura renascentista) buscar inspiração.

No final, temos uma porta fechada ambiguamente por arrombar, mas o que é certo é que Lapid conseguiu arrombar aqui a que tinha pela frente.


André Gonçalves

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