Os frescos que vão preenchendo as paredes da capela local da vila de Radegund, Áustria,  não conseguem preencher o vazio desta (nova) vida de Malick. E apropriando-me da frase do pintor, que surge a certo momento do filme, sente-se uma transposição dela para o sentimento geral do filme: “Eu pinto sofrimento, mas não o vivi“.

Aqui deparamos com o aspeto mais perverso de A Hidden Life: Uma Vida Escondida, o regresso do realizador às narrativas convencionais (dizem eles!), uma história decorrida em plena Segunda Grande Guerra, onde o conflito bélico somente surge representado nos uniformes dos militares que vão e voltam; nas imagens quer de arquivos ou de Leni Riefenstahl; e nas memórias do protagonista, que debate o seu próprio maniqueísmo.

É uma obra que promete essa reflexão à expansão do nazismo e à colaboração do “Grande Outro” (palavreando o filósofo Slavoj Žižek), que é o povo que colabora, ou melhor, os iludidos com estas doutrinas ideológicas (a língua alemã adquire a sua natureza bruta descrita por Primo Levi). Mas Malick tenta evitar as reais ideias destes tormentos e as dúvidas que constantemente se abatem no “herói” são diversas vezes alicerçadas num maniqueísmo fácil. Nesse termo, voltando ao iconolatra, o sofrimento é pintado numa bela tela (as paisagens dos Alpes austríacos são de cortar o fôlego), razão pela qual a pintura se assume na máscara daquilo que Malick não sente – o motivo para estas personagens deambularem num bucolismo pós-medieval.

Todavia, se as liberdades metafísicas, assim contidas (afinal Malick demonstra que não esqueceu de como contar uma história), são obstáculos para a alma deste cineasta, é verdade que nada de profundo encontramos aqui; apenas um conflito interno da sofisticação para o conformismo, por sua vez libertário, do realizador. As “maliquices” (termo carinhoso para as suas marcas autorais) estão lá; a voz off, os falsos-raccords, as cenas soltas fruto de material extra picotado na sala de edição; e os planos angulares que auferem um sentido quase panorâmico a todo o cenário.

É Malick a ser Malick, mas é também o trabalho em que ele volta a fazer algo meramente simples: colocar as personagens a comunicar umas com as outras (ja não fazia isso desde O Novo Mundo), e apostar nos respetivos sentimentos para além dos ditames dos sussurros onipresentes (e a compensação é a força adquirida no terceiro ato). Por outras palavras, é a obra que por fim decide abdicar muito do seu estilo espontâneo e anti-academismos.

Mas o facto de restringir-se a um regime de autocensura abre também as possibilidades de explorar as ausências sentidas no Malick ficcional, aquele que nos entregou Badlands e Dias do Paraíso, onde se sentia a relevância do ator. Mesmo que muitos que povoam este universo sejam inseridos num contexto de montagem, meros “bonecos” acidentalmente enviesados na jornada do herói/mártir (como é o caso de Bruno Ganz ou de Michael Nyqvist, ambas presenças póstumas), é no casal interpretado por August Diehl e Valerie Pachner que assistimos a essa colaboração entre um realizador receptivo e atores capazes de transportar as suas personagens para outros campos emocionais fora da mera representação.

Hidden Life fica-se por um retrocesso, não no sentido pejorativo, porque diversas vezes há que voltar atrás para guiar por novos caminhos. Tendo em conta o que o realizador estava a fazer nos últimos anos, esta talvez seja a melhor forma de se reerguer. Esperamos depois disto uma nova vida para Malick e o retorno do atual e universal sinónimo de autor norte-americano.