Há três anos, em plena passadeira vermelha do Festival de Cannes, Kleber Mendonça Filho e o seu elenco protestavam contra o impeachment que decorria na sua terra natal contra a ex-presidente Dilma Rousseff. O filme apresentado – Aquarius – não foi concebido como uma declaração direta dos factos, mas usufruia de um timing perfeito – e adquiria contornos de insurreição – ao mostrar a história de uma crítica de música reformada que tenta resistir a um despejo ilegal.

Em pleno 2019, no mesmo festival, Kleber e Juliano Dornelles brindam-nos com Bacurau, numa altura em que do outro lado do Oceano, o Brasil sai à rua em protesto contra os cortes no sector educativo. Novamente é o timing a fazer das suas, até porque em Bacurau existe uma cena-chave onde um camião despeja um amontoado de livros velhos à porta de uma escola, confundindo tal ato como um contributo à educação do homónimo vilarejo. Contudo, o par de realizadores decidiu não apresentar nenhuma declaração política no tapete vermelho, contrariando as expetativas de muitos que aguardavam uma forma de denúncia das políticas com que Bolsonaro tem ultimamente “afogado” diversos setores brasileiros, nomeadamente, como referimos, o sistema educativo. Para Kleber e a sua equipa, o “filme chega”. Inteiramente politizado, é um festim de cinema de género que repesca toda uma tradição de muito cinema norte-americano de culto, nomeadamente o de John Carpenter.

Bacurau é o nome de uma pequena cidadela de Pernambuco, que partilha o seu nome com um pássaro noturno que se alimenta de insetos. Ambos os significados [localidade e ave] são imensamente estranhos, quer esteticamente, quer pela sua natureza discreta. No caso do filme, preservando essa estranheza, indiciamos uma espécie de distopia possível minada de dupla interpretação política nas suas ações. Sónia Braga faz aqui a sua aparição como Dona Domingas, a médica da vila, respeitando assim o estatuto de heroína brasileira que tem vindo a adquirir desde que se redefiniu em Aquarius. Aliás, ela é a mulher da verdade sem medos (isto numa metáfora à cultura do medo que o filme utiliza como atalho para a contemporaneidade brasileira), das frases dolorosas mas certeiras, da anarquia que funciona como gancho de uma iminente organização e, acima de tudo, enfrentando as forças antagónicas num perfeito jogo psicológico, cuspindo na cara dos adversários. Mesmo reduzida a um segundo plano, o seu espectro está lá para nos confortar.

A dupla Kleber-Juliano decide regressar a estetização de O Som ao Redor, deixando-se levar pelo subversivo da narrativa e pela violência novamente feita como catarse de um país. Pois, é nesse cuidado visual que se assume desde o início como parceiro de série B, que Bacurau veste a sua capa de produto jubilante, inofensivo, aliás, como é aparentemente visto pelos habitantes desta cidade-título, que são correspondidos pela inscrição no letreiro da sua fronteira: “Se for, vá na Paz“.

Quanto ao enredo, que nunca renega a cumplicidade para com a narrativa visual, saltando pelas referências genéricas que tanto compõem as propostas de cinema de género do momento – do filme de cerco até ao western violento a la Sam Peckinpah, passando pelas incursões mais fantasiosas de Carpenter, e nunca esquecendo a ficção científica apocalíptica. Pernambuco torna-se aqui a terra de ninguém, sem oportunidades e de água escassa (este estado também era uma distopia na produção Reza a Lenda), o último reduto de um país vendido ao mercado ultracapitalista de “estrangeiros”, e marcado pelo “sangue na guelra” que se expõe sem reacionarismo.

Subversivo, Bacurau é o reflexo do estado de fúria num Cinema que tenta encontrar outros meios para ser político ao invés de recorrer aos rótulos do “cinema político”, e – com isso – torna-se num filme de género como não há memória no cinema brasileiro recente.

Poderiamos dizer que estamos perante um OVNI, mas citando aqui o ator germânico Udo Kier, a desempenhar um papel igual a si mesmo: “se queres ofender alguém, não uses clichés“. Não era a nossa intenção denegrir Bacurau, pelo contrário, por isso peço que não validem a expressão OVNI.

Pontuação Geral
Hugo Gomes
Jorge Pereira
André Gonçalves
bacurau-por-hugo-gomesUm OVNI com vias de se tornar num fenómeno