O fascínio mórbido de Jia Zhangke pela decadência do Oeste, através da desconstrução das suas imagens de marca, revela uma descrença do realizador pela dita globalização,  temáticas ou declarações fílmicas já pronunciadas e de forma mais evidente nos anteriores Mountains My Depart e Touch of Sin.

Em Ash is Purest White, novamente determinado na sua jornada, o cineasta cede a uma verdadeira utopia cinematográfica, frente a uma suposta distopia que encontraríamos na sua referida obra de 2015 [Mountains May Depart]. Nesse caldeirão de elementos, a sua câmara regista uma indiferença pelas diferentes nuances e tons. Se o metafórico se confunde com o realismo, a ficção com o documental, o heroísmo com o antagonismo ou o vitimismo com o belicoso, um poço leva-nos a uma mistela uniforme e unicolor, endereçado a uma espécie de “farinha do mesmo saco”.

E nessa fusão reforçada, Jia Zhangke filma o romance em conformidade com o crime sem cair nas armadilhas da transgressão passional, num registo que povoa um território cinzento algures no consciente da nossa moralidade. Sim, Ash is Purest White é essa distinção da cinza, a ambiguidade materializada, como a mais digna das cores a vestir, é um Cinema sem a palavra do julgamento. Com isso, surge um sentimento mais avesso à ocidentalização, com Hollywood e os seus círculos morais a serem as novas vitimas dessa fragmentação simbólica de Jia Zhangke.

A atriz Zhao Tao é novamente a arma do crime, como sempre cúmplice do realizador neste seu percurso. Ela, integrando o papel da mulher num ciclo ilícito inteiramente masculino, a perdida dama de Xangai que apela por esses códigos neo-noir, desprendende-se disso mesmo na sua busca inerente e emocional. A atriz corresponde com exatidão a essa serventia imposta por Zhangke, a boneca ideal por essa China profunda em plena segmentação. Todavia, ela não é somente a infiltrada nessa doutrina autoral. Há um compromisso com a câmara, uma vontade indómita de atribuir a vida a uma natureza morta sem vias de ressurreição (Still Life).

Numa das sequências mais vibrantes desta obra, num ajuste de contas à mercê de todos, Zhao Tao prepara a sua intervenção de arma em punho. Os seus movimentos acompanham os devaneios territoriais da câmara (ou será vice-versa?), uma submissão como flautista e a sua naja embicando e bailando perante as mais antigas lições de cinema. Como já diria Griffitth, para um filme basta uma “arma e uma mulher”, e  Ash is Purest White é mais uma lição ocidental que Jia Zhangke prescreve com essa emancipação balística.

Um turbilhão que se afasta da metáfora prolongada de Mountains May Depart, um “monstro” frankensteniano que interpela o Cinema como uma arte de criatividade quase eclética. 

(texto originalmente escrito em 12 de maio de 2018)