Sexta-feira, 29 Março

«Paris est à nous» (Paris Para Sempre) por André Gonçalves

O meu colega Hugo Gomes, a propósito de um outro filme, definiu o termo “malickices”, como sendo tiques herdados de Terrence Malick, o cineasta-poeta visual. 

Pois muito bem, se há filme que mereça mais esse selo que Paris est à nous, gostava que me apontassem. Há planos aqui nesta estreia de Elisabeth Vogler nas longas-metragens que parecem decalcados do trabalho de Malick (The Tree of Life, por exemplo), no tratamento igual de luminosidades e sombras refletidas no asfalto, por exemplo. Poderá até haver base para processo por plágio, tal é a aproximação de imagens. Há também aqui um fetiche por um movimento de rotação a sinalizar transição de universos, aí mais a puxar para o conterrâneo Gaspar Noé. 

A história, inicialmente linear (rapaz conhece rapariga numa discoteca, apaixonam-se, ele deseja partir para Barcelona, e ela vê-se numa encruzilhada), vai-se reconvertendo em planos alternativos, em potenciais visões do que poderia ter sido, ou do que se está a imaginar na hora da morte. Fica a ambiguidade, como se de repente, estivessemos num Sliding Doors versão multiverso (e não biverso), numa das potenciais interpretações do filme. E de facto, a Netflix continua a nutrir fetiches por este tipo de “realidades alternativas” que fogem para já à nossa percepção enquanto seres limitados. 

Perde-se um pouco o fio à meada, sobretudo estando sóbrios, e pensamos se a realizadora também não perdeu ela todo o fio nesta sua reverência explícita ao seu ídolo, ou se esta sensação de deambular para no final de contas não chegar a grande porto é um problema de tradução do seu pensamento para o olhar deste espectador.

Dito isto, nem tudo são espinhos. Referenciar Malick tem por outro lado a garantia de assistirmos a planos, se já vistos, sempre belos.  A evocação da tragédia pessoal, da sensação de perda coletiva, e a sua transposição para uma tragédia política (não fosse o cenário Paris, évidemment), é posta à prova numa das muitas sequências impressionantes aqui. Tudo isto para salientar que, se há algo a falhar nesta obra, não é propriamente com a câmara, ou até com o decalque em si. 

“Artístico”, de uma maneira simultaneamente boa e má (i.e. serve para reforçar estereótipos quer positivos quer negativos do “filme intelectual”), Paris est à nous é um falhanço bem digno de se assistir, que tenta aplicar a tese “toda a nossa existência pode ser um videojogo controlado por uma entidade externa (Deus? Extraterrestres?)” com resultados frustrantes, porque, lá está, fica a sensação de tanta parte bonita não somar para uma obra-prima verdadeiramente cósmica que parece andar a querer construir, sobre a qual também equipara aquele amor “uma vez na vida”. Uma pena, mas não deixa de ser um começo.   

 
André Gonçalves

 

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