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«Transit» (Em Trânsito) por André Gonçalves

Duas cartas, uma de amor, outra mais política, relacionadas uma com a outra. Um pedido de regresso e um visa que garante uma outra saída. Tem sido afinal este o confronto contínuo de Christian Petzold, o amor em tempos de guerra/cisão. Depois de Phoenix [1], a troca de identidade volta para causar assombrações, para quem se transforma e quem testemunha a troca – nós, espectadores, e a “enganada”, neste caso. 

As duas cartas são dadas no início de Transit como última missão até ao escape – para onde? Para fora de perigo. Há até um visa designado especialmente para tal, afinal. Georg aceita este trabalho em troca do tal escape, mas esta é desde cedo uma jornada anticlimática. O destinatário das cartas decidiu terminar a sua vida num quarto de hotel, fornecendo acidentalmente então a posse de uma nova identidade ao nosso agente – a de um escritor refugiado.  

Fala-se em fascismo, estamos entre Paris e Marselha a fugir perante uma destruição iminente, vinda de demasiado perto. Tudo aponta para a Segunda Guerra Mundial. Mas Petzold, de uma forma provocadora, ambígua para o espectador – que vá às cegas e esteja na dúvida entre a falta de orçamento ou a ousadia política tão necessária para a arte – opta por tornar o cenário desta narrativa anacrónico. Cartas e um manuscrito aparentam ser dactilografados, mas vemos carros e outros restantes adereços contemporâneos – uma “história a repetir-se, em ciclos inevitáveis“. Acreditamos claramente que o autor, tão perfecionista na reconstituição de época na sua obra passada, teve claramente esta jogada em mente – é este o filme que este escritor e outros viram, pelo menos.

Este esparguete entre passado e presente, trocando Nina Hoss e Ronald Zherfeld por um protagonismo sem grande oposição de Franz Rogowski (claramente uma das caras mais marcantes reveladas nos últimos anos – vimo-lo recentemente no desconcertante Happy End [2]e no take único de Victoria [3], e convém também mencionar o disruptivo Love Steaks [4]como primeira mostra) revela, tal como no passado da obra de Petzold, uma dependência na coincidência enquanto instrumento de suspensão de descrença. É este o ponto fácil do espectador mais picuinhas pegar, ainda mais que o anacronismo acima descrito e facilmente explicável, contextualizando-o com a nossa atualidade. Esta já existia anteriormente: o encontro de dois corpos que estavam romanticamente (e narrativamente) destinados a resolverem as suas manhas. Aqui, talvez haja encontros a mais, tudo demasiado no sítio certo, para quem já tinha as facas em riste. 

Assim, a resolução final deste thriller melodramático também não traz o K.O. emocional de Phoenix [1], não senhor. Já adivinhamos a esta hora o lado para o qual o cineasta vai chutar com base na sua perna de apoio. Mas que apoio! Não haja dúvidas que permanece aqui uma beleza “classicista” invejável, assombrosa e ultimamente assombrável (tentando manter o spoiler ao mínimo), nesta segurança ofensiva. Tomara todos os seus contemporâneos fazerem filmes tão “transitórios” como este, portanto. 

 

André Gonçalves