Quinta-feira, 25 Abril

«The Ballad of Buster Scruggs» (A Balada de Buster Scruggs) por Jorge Pereira

Uma das maiores surpresas da programação do Festival de Veneza foi a presença na competição de The Ballad of Buster Scruggs (A Balada de Buster Scruggs), um projeto ambientado no Velho Oeste com assinatura de Joel e Ethan Coen (Fargo; Este País Não é Para Velhos). E surpresa porque este projeto para a Netflix estava definido como uma série antológica de seis episódios que entrelaçava outras tantas histórias.

A verdade é que a série transformou-se num filme de seis capítulos e até ganhou o prémio de melhor argumento em Veneza, mas como quase todos os projetos marcados por serem coletâneas de pequenos segmentos, sofre de problemas de irregularidade na qualidade e interesse de capítulo em capítulo, embora todos eles tenham a marca pessoal dos Coen no que diz respeito ao humor negro e na caracterização da morte como algo repentino, absurdo, muitas vezes rodeada de mistério, mas ainda mais vezes surreal, ridícula e cruel.

É no primeiro desses contos que conhecemos Buster Scruggs (soberbo Tim Blake Nelson), também conhecido – entre outras alcunhas, cognomes e apelidos – como o rouxinol de San Saba. Scruggs é um tagarela que usa a música como prazer e marca pessoal, estando particularmente irritado por haver um pedido para a sua captura onde o descrevem como “Misantropo”.

Segue-se uma curta (Near Algodones) onde James Franco é um fora da lei e tem de lidar com as consequências; um conto – Meal Ticket– em que Liam Neeson é um empresário ambulante que apresenta um orador teatral sem braços e sem pernas (Harry Melling); uma história (All Gold Canyon) em que Tom Waits chega a um idílico local (que faz lembrar Uma Casa na Pradaria) em busca de um filão ouro; um segmento (The Gal Who Got Rattled) que acompanha uma caravana a caminho do Oregon; e finalmente The Mortal Remains, episódio que ocorre quase inteiramente dentro de uma diligência (num piscar de olhos entre Cavalgada Heróica de John Ford e Os Oito Odiados de Quentin Tarantino), no qual um grupo de estranhos (Tyne Daly, Brendan Gleeson, Saul Rubinek, Chelcie Ross e Jonjo O’Neill) discutem temas triviais, rodeados de uma aura de horror gótico.


Tom Waits

Acima de tudo, o que se destaca nestas seis baladas, nestes seis contos populares e pitorescos baseados em clichés e lugares comuns do velho oeste, e construídos como um antigo livro ilustrado de estórias, é que os Coen sabem navegar – com mais ou menos inspiração – entre diversos géneros e estilos dentro das suas histórias de faroeste, muitas vezes aproximando-nos do espírito de muita da cinematografia. Se a primeira obra prima pelo tom musical e tem em comum com a segunda a comédia splatter a maioria das vezes slapstick, o terceiro, quarto e quinto capítulo (este com toques de romantismo) são relatos mais dramáticos com pequenos apontamentos cómicos e alguma acidez e sarcasmo; já o último capítulo é mais misterioso, carregado de negritude, encerrando um filme que de certa maneira para nós também representou uma viagem misteriosa.

Curiosamente, qualquer um destes contos poderia perfeitamente ser adaptado aos tempos de hoje, destacando-se o terceiro como uma crítica mais ou menos subtil à substituição das formas de arte ligadas a dramaturgia pelo entretenimento bacoco e os fait-divers, personificado através de uma galinha perita em calcular e um “empresário” que segue as tendências do gosto para sobreviver (ou fazer dinheiro); ou a quarta história, como a forma como o homem explora e corrompe os lugares virgens.

Em suma, The Ballad of Buster Scruggs pode não ser o melhor trabalho dos Coen ou chegar sequer perto deste estatuto, mas na sua essência é um projeto cheio de marcas, referências e irreverências de um duo que acima de tudo mantém uma enorme coerência e atitude de agitação num cinema cada vez mais focado em heróis e super-heróis. Aqui, todos eles se abatem…


Jorge Pereira 

Notícias