Sexta-feira, 19 Abril

«Widows» (Viúvas) por Jorge Pereira

Uma das grandes qualidades de Steve McQueen é a sua capacidade em sujar as mãos, de através das suas imagens, textos e personagens desconstruídas a nível psicológico não ter medo em provocar o desconforto no espectador. Nesse processo, realizador de Fome, Vergonha e 12 Anos Escravo sabe sempre impor o ritmo certo, quer na ação propriamente dita, quer nos momentos de contemplação ou reflexão, atribuindo constantemente várias camadas (sociais, políticas, pessoais), mesmo que na montra, no expositor do seu produto cinematográfico, esteja aquele que é até hoje o seu filme mais comercial: Viuvas.

Se a orquestração de um assalto mirabolante é o centro operático deste Viúvas, a verdade é que aos poucos, através do texto e opções técnicas, o cineasta vai expandindo a sua área de ação como se estivéssemos perante uma verdadeira Matrioska alimentada a 24 frames por segundo. É nas entrelinhas do dito assalto e das sequelas na vida de um grande número de personagens que McQueen explora com um enorme sentido de precisão e paixão temas como o amor, os meandros corruptos e lobistas da política moderna, as desigualdades de género, de classes, de raça, nunca esquecendo o crime numa cidade de Chicago, que aqui volta a ganhar os contornos que Spike Lee refletiu em Chi-raq, isto numa América entre feridas, cicatrizes e marcas do passado que se refletem na sua atualidade.

Adaptação de uma série televisiva dos anos 80 no Reino Unido (a ação passava-se em Londres), Viúvas começa por apresentar as suas personagens (Veronica/Viola Davies e Harry/Liam Neeson) em momentos de grande intimidade (a cena faz lembrar a inicial de Kids) enquanto simultaneamente mostra como um grupo de ladrões, liderados por Harry, tenta escapar da polícia de forma frenética.

Essa perseguição termina em tragédia e paralelamente continuamos a conhecer as outras histórias pessoais dos homens envolvidos, apercebendo-nos das suas ligações afetivas, mas também das dependências nas suas relações problemáticas com as esposas, que em alguns casos passam por abusos morais e físicos. O que vem a seguir a estes primeiros momentos é um estudo aos danos colaterais do assalto, das atividades criminosas do grupo e das suas mortes, que vão pôr em xeque as viúvas, mas igualmente revelam ligações entre criminosos e políticos (até não se distinguirem os dois), revelando um enorme polvo de influências com ramificações maiores do que à primeira vista aparentavam.

Se em termos de cinema de ação e thriller, Viúvas não deslumbra, embora revele-se um entretenimento capaz de nos prender de dentes cerrados até ao seu final (muito impulsionada pela banda-sonora de Hans Zimmer), é nas entrelinhas desse cinema para massas que surgem as maiores subtilezas e triunfos de McQueen, em especial a sua capacidade de apresentar os alicerces viciados da política contemporânea, o poder e pressão do legado familiar, o racismo num sistema neoliberal, as iniquidades entre homens e mulheres, ricos e pobres, brancos e negros. E tudo isto é abordado através de personagens mais ou menos profundas, presas entre o passado e o presente, e sem qualquer certeza sobre o futuro.

Se o guião – escrito a três mãos entre McQueen, Gillian Flynn (Gone Girl; Sharp Objects) e Lynda La Plante (escritora da série original), com diversas camadas de introspecção é um triunfo, as opções de McQueen e dos atores elevam o material para a estratosfera.

Nas interpretações, do trio de mulheres, por exemplo, seria de esperar uma Viola Davies a roubar os holofotes perante Michelle Rodriguez e Elizabeth Debicki (talvez a maior surpresa do filme), mas tal não acontece assim de “caras”, com todas elas demonstrarem muita força, expressividade e dualidade nas suas personagens, quer quando estão sozinhas, quer quando estão em grupo a planear o roubo. O mesmo se aplica aos envolvidos nas questões políticas, com Robert Duvall (soberbo) e Colin Farrell fulminantes num dos lados da barricada (embora revelem um duo fragmentado em termos ideológicos), acompanhados no passo, brilho e solidez por Brian Tyree Henry e Daniel Kaluuya no outro lado da rivalidade.

Há ainda que mencionar pequenas aparições maravilhosas, com Jacki Weaver a resgatar a frieza, calculismo e sentido familiar de Animal Kingdom para a sua Agnieska, a matriarca de Debicki; Lukas Haas como um arquiteto que recorre a acompanhantes de luxo que trata como uma transação comercial; e voltar a falar de Duvall, soberbo como a velha raposa da política com ideias retrógradas prestes a passar o testemunho ao filho (Farrell).

Já a lente de McQueen recorre a inúmeros artifícios autorais para explanar ambiguidades da narrativa e personagens. Reflexos nas janelas (duplicidade entre as pessoas e o seu reflexo, já presentes em Vergonha, por exemplo), jogos de espelhos, que nos dão a mesma personagem em diferentes ângulos (e perspetivas das ambiguidades), planos de observação rodeados de estranheza que se expandem à geografia do local e assimetrias da paisagem (veja-se uma sequência ao volante, na zoona nobre), ou tracking shots que “chocam” em objetos inanimados (como o pára choques de um carro), dão um verdadeira “marretada” no esquematismo dos “heist movies“.

Em suma, embora se sinta que há certos elementos apressados – especialmente na recta final – porque seria impossível desenvolver num filme com a mesma capacidade que numa minissérie, a verdade é que há tanta coisa para ver, pensar e vibrar durante a sua extensão que podemos dizer que estamos perante uma das mais admiráveis obras este ano.


Jorge Pereira

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