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«Widows» (Viúvas) por Raquel Soares

Steve McQueen, realizador de Hunger, Shame e do oscarizado 12 Years Slave, é sobretudo conhecido como um autor que gosta de fazer os seus espectador sofrer. Mais do que isto, as suas sucessivas e longas cenas de inflição de dor, quer a nível físico, quer a nível psicológico, transcrevem no espetador esse sentimento de desespero na pele. É no entanto bastante visível que o realizador tende em usar estas ferramentas de provocar choro e o desconforto como microfones. Impossível de ignorar ou atenuar, estes filmes tornam-se o barulhento testemunho de uma realidade.

Não é assim surpresa que este novo filme, para além de parecer inaugurar um novo território para McQueen, tenha reunido altas expectativas. As críticas positivas eram assim mais do que esperadas. Inesperado no entanto foi a reação do cineasta a estas. Numa paisagem maioritariamente masculina, McQueen afirma (numa entrevista com o jornal britânico  Independent) que muitos destes críticos “são muito cegos a certos aspetos do feminismo” e não conseguiram detetar o que realmente se estava a tentar passar. Salientando um foco prevalente no aspeto de “heist” (golpe).

Efetivamente, quando vemos o filme apercebemo-nos que este foco está realmente muito desproporcional, uma vez que este ponto de venda, o assalto, é mesmo o menos importante. Mais do que isso, seria muito difícil definir um foco concreto para o filme. Como uma espécie de nó cego, os temas de Widows embaralham-se uns nos outros de modo a que seja quase impossível de os isolar.

Por esse motivo, dizer, por outro lado, que este filme é apenas sobre a Mulher é também redutor, porém, seria incorreto dizer que não apresenta uma reflexão sobre o papel da mesma na sociedade. Mais especificamente, Widows olha para o que acontece quando mulheres se libertam involuntariamente da inconsistência de amar um homem que vive na corda bamba. No entanto, não tem medo de focar em tudo o que separa estas mulheres, nunca hesitando em demorar o seu tempo com cenas que apenas servem para marcar a individualidade de cada uma. Explora sem vergonhas e tabus as várias facetas da palavra Mulher. É justo mesmo afirmar que o filme recorre a estereótipos (a esposa do empresário rico que tem lugar em painéis administrativos, a mãe, a mulher que apenas depende da sua aparência porque acha não possuir mais nada), mas permite aos atores trabalharem com estes dando-lhe mais camadas à medida que a história vai avançando e as situações se tornam mais extremas. As personagens definem-se mesmo por esta espécie de paradoxo de serem profundamente humanas em situações extremas e irrealistas

Widows afasta-se portanto do seu popular antecessor, recorrendo muito pouco às anteriores recorrentes cenas de violência física e emocionalmente gráfica que se arrastam eternamente. A violência é silenciosa, um mau estar constante, a ameaça que espreita e ataca a qualquer momento. A tristeza assume-se como uma das marcas de luto, de feridas antigas que nunca sararão completamente. Tem a capacidade de te mover profundamente apenas com isso.

O filme foge sobretudo das tentativas estilísticas artificiais, não escolhendo fazer planos bonitos, liga pouco à arte pela arte, todos os planos são antes planos de significado. Tem um ritmo muito próprio, uma construção, que diria, quase estranha. Não tem medo de saltar de sequência em sequência sem se preocupar em explicitar as suas relações, acreditando na capacidade do espectador em ligar peças todas. Muitas vezes encontramo-nos a acabar flashbacks que desconhecíamos ter sequer começado, usando o poder das lembranças de forma muito particular, quase como uma reflexão de como o humano retira tempo do seu dia para parar o tempo e assim viver as recordações passadas.

Widows marca também a diferença enquanto filme de ação, o qual cada fatalidade conta, cada vida retirada desencadeia um peso associado (algo que é pensado para obter consequências e significado na história). Uma boa maneira de definir este filme é mesmo esta, como profundamente pensado. Todas as ações tem um propósito, algo de mais a transmitir, e a verdade é que este marca muito mais pelas decisões das personagens e dos acontecimentos do que pelo dialogo proferido.

O filme foca-se ainda numa imensidade de outros temas; eleições, racismo, brutalidade policial, organizações criminosas e promete encaixar todos uns nos outros, encarregando o espectador de montar as peças sozinho. No fim, diríamos que a peça principal que liga todo o conjunto é o dinheiro, esse veneno do capitalismo. E o feminismo do filme encontra-se mesmo aí, mostrar que as mulheres são exatamente iguais aos homens, capazes de fazer o que os homens fazem, sendo que no fim, independentemente do género, estamos todos subjugados ao poder máximo do dinheiro. No fundo somos todos terrivelmente humanos, todos vamos ser arrastado para o fundo se não nos desprendemos do saco de dinheiro que se encontra amarrado aos nossos pés.

Concluindo, Widows é uma obra extremamente provocadora, mascarada numa premissa banal. Construído não só pela sua estranheza de montagem, mas também pelas excelentes perfomances de atores que tiveram que cavar fundo, cada ator é perfeito para o seu papel, e um guião extremamente engenhoso de Gyllian Flyn (autora do livro e do guião de Gone Girl). Eis, de certeza, um dos momentos altos do ano.

Raquel Soares