Terça-feira, 19 Março

«The Wife» (A Mulher) por André Gonçalves

Se há história praticamente tão antiga como a do florescer de um romance, é o arrefecer de uma relação. The Wife, romance editado há cerca de 15 anos por Meg Wolitzer acaba no entanto por ter mais na bagagem que a típica história de dissolução de um casamento – nomeadamente uma temática feminista que contou com um timing fabuloso: pouco depois de ser completada esta adaptação, rebentou o movimento #MeToo, onde um sem número de mulheres se revoltou contra a cultura de assédio, violação, ou de simplesmente passar o tempo na sombra de outros homens, que as terão chantageado, tendo exercido assim alguma forma de poder sobre elas. A ação do filme, que decorre em 1992, soa assim mais a 2018 que nunca, fora uma ou outra referência específica.

Joan e Joe Castleman são um casal de longa data. Numa manhã, confirma-se o que secretamente já esperavam: Joe conquista o Prémio Nobel da Literatura, e a viagem à gélida Suécia (Estocolmo), para a cerimónia de entrega do prémio, acaba por se revelar incendiária, desencandeando uma sequência de emoções e memórias que acabam por questionar a estabilidade desta unidade familiar. Através do clássico uso de flashbacks, o espectador começa a juntar as peças: Joan terá aparentemente abdicado da sua arte enquanto escritora promissora pelo amor. Agora microgerencia o seu marido, ao ponto de estar atenta às migalhas da sua barba.

Amor ou “não sei”: a certo ponto, tudo é nebuloso. “És uma mentirosa tão boa” diz-nos o marido à mulher, que se recusa a ser pintada como vítima. “Sou muito mais interessante que isso“. Esta personagem titular encontra a atriz ideal para a interpretar, e para recusar essa vitimização fácil: Glenn Close apresenta definitivamente das caras mais expressivas que vimos na sua geração ou nas gerações seguintes, e o realizador Bjorn Runge também sabe disso, praticamente inventando um novo tipo de plano: o “Glenn Close up”. Sem praticamente grandes diálogos, subjugada à sua condição cúmplice, o rosto desta atriz contém na sua expressividade, nos seus olhos azuis, nas suas rugas, páginas de diálogo não proferido e anos de história em comum por revelar, apenas simplesmente por pequenas expressões, a sinalizar o mal-estar, a bomba-relógio em andamento. Há um momento em que a câmara também se ilumina com um close-up: Joan está, visivelmente emocionada, a ouvir o discurso de aceitação do seu marido. Ele referencia-a como motivo pelo qual não estaria em cima daquele palco. Há logo um foco extra de luz sobre o rosto da atriz. É o grande plano deste filme. 

Não vou ser ignorada” dizia uma das suas personagens mais icónicas (Alex Forrest, Atração Fatal), e efetivamente Close tem feito de tudo para não o ser dentro o ecrã. Salvo raríssimas excepções (Albert Nobbs, precisamente a sua última nomeação ao Oscar) tem sabido escolher personagens fortes, que façam jus de uma certa ambiguidade moral. Se não for desta que a qualidade se junta ao marketing dos Oscar, fica pelo menos a consciência de um trabalho a ombrear com o melhor da sua carreira, um opus tardio.   

Jonathan Pryce constitui o outro eixo do filme, e é, de uma forma muito metalinguísitca, uma peça de suporte ao crescendo de Close; reage sobretudo, faz perguntas, parece adequadamente perdido no meio daquele cenário por vezes. É uma interpretação de uma generosidade tremenda, destinado a ser visto como o elo mais fraco do duo. 

A realização foca-se precisamente na interação dos atores em espaços fechados, sinalizando poucas vezes o espaço exterior gélido que os circunda através de visões panorâmicas. Mas mesmo sendo este um filme que sai fortalecido pelos seus atores, pelos diálogos e pelo seu tema central, há aqui pormenores técnicos dignos de registo, para combater quem esteja disposto a despachar este filme com o rótulo simplista de telefilme: nomeadamente uma atenção ao framing das suas cenas (não só ao enquadramento dos atores da cena, mas à própria focagem da personagem titular, ou falta dela, para sinalizar a turbolência emocional desta, por exemplo), e na boa gestão da tensão desta narrativa. 

Filme pequeno a servir uma performance histórica, The Wife é também uma adaptação espantosamente concisa e coesa, salvaguardada por uma realização sóbria e bem estudada, e claro, profundamente atual no seu tema central (e continuará a sê-lo por tempo indeterminado, infelizmente).  

André Gonçalves

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