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«Vazante» por José Raposo

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Vazante é um filme ambientado num Brasil colonial, mesmo à beira da independência – a ação decorre em 1821 -, e que tem como principal arco narrativo o espectro de violência, desgraça e horror que ora tem origem, ora se abate sobre Antônio, um comerciante de escravos e gado de origem portuguesa. Começa mal e acaba pior, numa história que se enleia sobre si mesma (não há como escapar à repetição da História, creio mesmo ser esta uma das ideias fundamentais que atravessa boa parte do filme), e que faz do espaço dramático central, motivo de constante reflexão entre a “separação” (ou continuidade?) entre civilização e natureza ou, se quisermos olhar para questão doutra forma, pretexto para uma constatação algo desencantada relativamente à impossibilidade da construção de um mundo em conformidade com ideais de justiça.

Boa parte da açção decorre numa fazenda rodeada por uma selva e mato que trazem ao pensamento uma imagem de um mundo natural que transporta qualquer coisa de Herzog – um ruído de monumental indiferença, já para não dizer hostilidade, por exemplo -, com a realização de Daniela Thomas a demonstrar um sentido de composição assinalável e que sai reforçado pelo uso de uma belíssima fotografia a preto e branco. A cena de abertura é uma janela para um século XIX marcado pelo esforço do horror: mãe e filho morrem num parto violentíssimo, numa sequência em que a proximidade física dos corpos nos dá uma imagem particularmente dolorosa das “raízes” dos laços familiares. Se o pano de fundo é, até certo ponto, o estertor de um império colonial, em primeiro plano ficam as cicatrizes na pele de uma estrutura social obscena.

É verdade que o grande rigor e calculismo milimétrico com que Thomas compõe o seu filme nem sempre estão condizentes com uma desenvoltura narrativa manifestamente tímida. Mas é também esse lado mais austero e sombrio que torna Vazante numa experiência cinematográfica particularmente memorável.


José Raposo