Quinta-feira, 28 Março

«Hereditary» (Hereditário) por Jorge Pereira

Mais que o terror, a angústia é o principal motor deste Hereditário, a primeira longa-metragem do cineasta norte-americano Ari Aster, que conta ainda com uma desesperante Toni Collette a elevar o filme para outro patamar de excelência na sua segunda metade, e um Gabriel Byrne a transmitir toda uma impotência perante o que vai acontecendo à sua volta, como um mero fantoche arrastado pelos eventos e personagens.

Entenda-se que Aster sempre soube lidar com temas em torno da família, quer num tom mais sério, quer num registo mais satírico e ácido, como o seu trabalho inaugural, The Strange Thing About The Johnsons, uma provocante curta-metragem esteticamente cuidada sobre um caso de abuso sexual de um filho sobre o pai. (absolutamente imperdível, vejam aqui).

Neste Hereditário, Aster pega num tema comum no cinema, não apenas de género, mas nos dramas: a irrupção do “mal” numa célula familiar, fustigada por elementos nefastos e atávicos que os levam a crer que estão amaldiçoados. Tudo começa após a morte da matriarca, anunciada com o seu obituário logo a abrir do filme. A partir desse momento, estranhos eventos começam a ocorrer na casa da família Graham, constituída pelo casal (Collette e Byrne) e os seus dois filhos (Alex Wolf, Milly Shapiro).

A forma como o cineasta filma todos os momentos, desde o primeiro plano, é apaixonadamente milimétrica e sofisticada, notando-se claramente que mais que procurar influências no cinema de terror de sustos, Aster prefere pescar tons e ambiente em thrillers psicológicos, com obras de Nicolas Roeg e Roman Polanski à cabeça, como A Semente do Diabo (1968) e Aquele Inverno em Veneza (1973). A isto acresce um olhar clínico, emocional mas assaz severo sobre as relações familiares, admitindo o cineasta que Mike Leigh foi uma forte influência, em especial nas suas “personagens e relações humanas orgânicas“. Outro dos elementos a reter neste trabalho profundamente visual, mas extremamente cuidado em termos de narrativa e textos, é a cenografia e a fotografia, tratadas de forma harmoniosa e simbiótica, acasalando continuamente com o pulso ritmado do cineasta para nos entregar uma filme acima de tudo inquieto e que teima em fugir à previsibilidade do cinema de género contemporâneo.

O resultado de tudo isto é um filme tenso, em constante ebulição e que numa primeira fase se apresenta como um profundo drama familiar, com o “mal” a invadir as suas presas como uma doença ou um veneno, incrustando-se em cada um deles, com maior ou menor dificuldade, consoante as defesas de cada um. Já numa segunda fase, o filme evolui para uma linguagem mais próxima do terror, com incursões paranormais e imagens repescadas do género, mas num registo mais terreno e psicológico que nos deixa permanentemente na dúvida se o que estamos a ver é real ou um pesadelo, uma alucinação individual ou conjunta. Quando chega definitivamente o desenlace, Aster torna-se mais óbvio e impetuoso, entregando uma sequência capaz de agradar ou desiludir a tudo e todos, mas fá-lo sem qualquer hesitação ou medo, provando que acima de tudo tem a coragem de entregar algo frontal e direto, que ainda assim deixa a nossa mente a conjurar pelo que acontecerá depois.

Por isso, e de forma bem clara, Hereditário é um filme que merece um olhar atento, mesmo que por alguns momentos tenhamos a sensação que o realizador quer ser tão arrojado e mostrar demasiados elementos e trunfos, que arrastam o filme para lá das duas horas, sinceramente excessivas para mostrar tudo o que tem a mostrar. Mas isso é típico de cineastas numa primeira obra. O polimento e o pulso de sintetizar sem perder eloquência e elegância chegará mais tarde na sua carreira, e Aster já se revelou dos mais promissores na sua área com as curtas que executou e esta longa deliciosamente assustadora.


Jorge Pereira 

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