A facilidade com que ficamos horrorizados com retratos de pais negligentes, e muito mais com mulheres sem aptidão maternais, torna-se num dos trunfos choque de Gueule d’ange, a primeira longa-metragem da luso-descendente Vanessa Filho. Todavia, é esse julgamento instantâneo da nossa parte que esconde um certo sentido patriarcal, como se todas as mulheres dessem boas mães ou como se todas mulheres sonhassem ser mães. Não estou com isto a perdoar as irresponsabilidades da personagem de Marion Cotillard, que nos apresenta um agravado estereotipo da mãe ausente, que só pensa em folia e não tem disposição para compromissos maternais – comportamentos que irão refletir-se no seu rebento, que sustém numa distorcida estrutura familiar.

No arranque deste filme percebemos o que nos espera: uma mãe embriagada que cai como peso morto na sua própria cama, pedindo à sua criança uma canção de embalar. São os papéis invertidos representados naquilo que parece um pedaço de ternura marginalizada, mas de ternuras também está o inferno cheio. Gueule d’ange é uma coletânea de infâncias traídas e maturidades forçadas frente a imaturidades voluntárias. Caímos que “nem uns patinhos” nas referências e influências entranhadas desse mesmo Cinema, desde Little Fugitive, de Ray Ashley e Morris Engel (a promessa de Coney Island trocada pela promessa do Carnaval), até 400 Coups, de Truffaut (a mentira, “a minha mãe morreu”), passando por Nana, de Valérie Massadian (a emancipação imediata da criança) e porque não, o recente The Florida Project (a criação de uma realidade em separado para a distancia do mundo adulto).

Vanessa Filho prova ser conhecedora desses mesmo códigos e entranhando no universo Lolita tece uma “naperon” por uma existência deslocada, emitida por um crescimento anti-natura. Gueule d’ange atesta-se em planos fechados, um cerco claustrofóbico que rodeia estas personagens atípicas, que dispersa-se por aberturas cénicas após o crucial desaparecimento maternal. Com isto, a realizadora distancia a mãe e filha simbolizando esse afastamento através de uma planificação mais ampla. Há sim, uma linguagem que as une (as personagens e Vanessa Filho), uma espécie de código morse para mante-las a sãs e salvas dos julgamentos reacionários dos espectadores, um trilho seguro para que as distorções afetivas e familiares deparem-se com o seu pathos.

 

Elli, as “fuças de anjo”, interpretada pela jovem Ayline Aksoy-Etaix, a menina-adulta sem conhecer as razões da sua instantânea emancipação, projeta a sua carência em estranhos, em lugares-comuns captados pelo seu olhar em plena aprendizagem e, por fim, pela influência dos Medias e da exaustiva informação jogada por esses meios. A distorção faz parte, não apenas do mundo de Elli e da sua mãe, mas do mundo em geral, ideia repensada pela inocência e não-inocência das crianças.

Gueule d’ange pode ser um filme incumprido pelo síndrome de “primeira longa-metragem”, mas é um projeto dotado de iniciativa, ideias e sobretudo uma motivação para criar o seu próprio simbolismo. Não tem pinta de ser “amado”, convenhamos salientar, nem as suas personagens.

(texto escrito em 12 de maio de 2018)