Terça-feira, 19 Março

«Die göttliche Ordnung» (A Ordem Divina) por Aníbal Santiago

“Die göttliche Ordnung” tanto tem de bem-intencionado e leve como de anódino, previsível e inconsequente. Falta-lhe chama, fervor e ousadia, mas também a capacidade de atribuir vigor e gravidade às temáticas que aborda. É certo que beneficia e muito de contar com uma protagonista minimamente interessante (interpretada de forma competente por Marie Leuenberger) e de se embrenhar por um episódio histórico que permite explorar temáticas relacionadas com os direitos das mulheres e o feminismo, embora nem sempre seja capaz de traduzir a complexidade destes assuntos. Diga-se que o filme até começa relativamente bem ao colocar-nos perante uma série de vídeos de arquivo que transmitem de forma rápida o contexto efervescente da época e as mudanças que estavam a acontecer, algo que é contrastado com o conservadorismo da aldeia onde decorre o enredo, situada na Suíça, em 1971, nas vésperas do referendo de 7 de fevereiro.

Esta votação visava aprovar ou rejeitar o sufrágio feminino a nível federal, tendo mexido e muito com Nora (Marie Leuenberger), a protagonista. Nora é uma dona de casa, casada com Hans (Maximilian Simonischek), de quem tem dois filhos, os jovens Luki (Finn Sutter) e Max (Noe Krejcí). O matrimónio de Nora e Hans é estável, mas desprovido de tempero, algo transmitido pelos intérpretes e reforçado pelo seu guarda-roupa, quase sempre discreto e conservador, uma característica que perdura praticamente até ao último terço do filme. A protagonista não é politicamente engajada mas, aos poucos, acaba por se ver envolvida nesta luta pelo direito ao voto, enquanto tem de enfrentar imensa oposição, granjear apoios e desafiar o conservadorismo, com “Die göttliche Ordnung” a partir dos exemplos particulares dos seus personagens e das suas dinâmicas para explorar o contexto da época.

O machismo, o conservadorismo e os preconceitos são abordados, tal como a revolução sexual, o feminismo e a luta das mulheres pelos seus direitos, embora a leveza excessiva com que tudo é exposto e desenvolvido acabe por sabotar algumas das boas intenções da realizadora Petra Volpe. Note-se a forma quase telegráfica como é abordada a violência doméstica ou a ligeireza com que são expostos diversos atos pouco recomendáveis dos homens. Falta sentir as consequências destes atos negativos, embora a cineasta prefira não ferir o espectador ou conceder tempo para sentirmos as repercussões de alguns episódios. Essa situação é particularmente visível quando encontramos um personagem a ameaçar divorciar-se da esposa, embora esse desejo seja rapidamente esquecido.

O parco desenvolvimento de diversas figuras secundárias e de algumas subtramas também não ajuda, algo que retira força às mesmas, com o caso de Hanna (Ella Rumpf), a sobrinha da protagonista, uma jovem de personalidade forte e rebelde, a ser um exemplo paradigmático dessa situação. Os filhos de Nora também não conseguem ganhar personalidade ou espaço de destaque, enquanto Hans surge acima de tudo como um produto do seu tempo, ou seja, como um indivíduo conservador que ama a esposa mas nem sempre demonstra abertura para com a mesma. O conservadorismo da época é exibido não só a partir de um número considerável de homens, mas também de algumas mulheres, entre as quais Charlotte (Therese Affolter), uma das vozes mais sonoras contra o sufrágio feminino, algo que contrasta com os comportamentos afáveis de Vroni (Sibylle Brunner).

Se Therese Affolter conta com uma personagem unidimensional e caricatural, que procura fazer de tudo para impor os seus valores conservadores, já Sibylle Brunner tem em Vroni a figura mais interessante do filme, uma senhora vetusta que apoia a protagonista, sofreu na pele o facto das leis da época colocarem quase todo o poder de decisão nos homens e exibe as marcas que o tempo deixou na sua pessoa. Volpe utiliza o passado para comentar o presente, em particular as disparidades que continuam a existir entre os homens e as mulheres, com o filme a expor algumas batalhas desta longa luta, ainda que de forma pouco corajosa e algo artificial. A mensagem feminista e o episódio que “Die göttliche Ordnung” retrata são meritórios e dignos de realce. O seu valor como filme é que está longe de chegar ao poder das suas temáticas. 

Aníbal Santiago

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