Terça-feira, 19 Março

«Kedi» (Gatos) por Aníbal Santiago

Flecha de ternura lançada contra o cinzentismo, o pessimismo e a tristeza, Kedi é um documentário terno, cândido e adorável, que se embrenha pela ligação que existe entre Istambul e os gatos, bem como pelo modo como estes marcam a cidade e os seus habitantes. É filme para quem gosta de gatos, pessoas e cinema, que proporciona algumas doses de leveza, imensos momentos pontuados pela doçura e conta com um punhado de situações e entrevistas que explanam a relevância que estes felinos têm para os seres humanos. Algumas entrevistas contam com mais cor e um tom cómico e leve, outras com uma faceta mais profunda e comovente, sobretudo aquelas em que o poder terapêutico e pedagógico dos gatos é exposto de modo bem vivo. Veja-se a senhora que cura as suas feridas interiores a auxiliar estes animais ou o indivíduo que recuperou de um esgotamento nervoso em parte graças a começar a cuidar de alguns bichanos.

A relação das pessoas com os gatos é exposta e realçada, tal como a ligação dos felinos à cidade e as idiossincrasias destes animais. A câmara acompanha-os de forma atenta, muitas das vezes a um nível bastante baixo, pronta a captar os seus movimentos, o seu campo de visão e as suas particularidades, enquanto ficamos perante uma série de gatos e as suas personalidades distintas, algo que praticamente permite que a realizadora Ceyda Torun crie pequenas histórias em volta dos mesmos. Observe-se o caso de Psikopat, também conhecida como “psicopata”, uma gata de personalidade forte, que é capaz de colocar o “esposo” e a concorrência em sentido, ou a luta pelo domínio do bairro por parte de Ginger, um felino recém-chegado e Gamsiz, um bichano que se posiciona de forma peculiar para que lhe abram as janelas.

Torun consegue incutir interesse aos episódios que envolvem os gatos, seja quando estes estão sozinhos ou nos momentos em que permitem a presença dos humanos. Note-se o episódio filmado com recurso a uma câmara de visão noturna, no qual ficamos perante um bichano que tenta caçar um rato, num trecho em que a banda sonora e as imagens em movimento remetem quase para a atmosfera de um filme de suspense. A cineasta consegue ainda transmitir que os gatos de Istambul estão habituados a contactar com os humanos, enquanto estes respeitam os primeiros e sabem lidar com as suas especificidades, algo que contribui para uma série de episódios que enchem o coração. Veja-se quando encontramos um indivíduo a dar leite a um conjunto de gatinhos bebés, ou a maneira descarada como os gatos circulam pelo mercado e fazem tropelias pelas bancas.

Essa ligeireza é a grande força e, a espaços, a maior fraqueza do documentário, com Kedi a fazer questão de não se aventurar por temáticas mais melindrosas: todas as pessoas entrevistadas gostam de gatos, quase que a transmitir a falsa ideia de que estes são apreciados por toda a cidade; o contexto político é praticamente ignorado; os problemas enfrentados pelos animais de rua são maioritariamente deixados de lado. Não é que não exista aqui e ali um ou outro comentário. Veja-se um plano aparentemente inocente do rosto de um felino, embora em pano de fundo encontremos um grafitti de protesto contra Erdoğan (uma revista teve a “ousadia” de destacar esse momento, algo que a levou a ser encerrada). Temos ainda um episódio em que um gato bebé aparece morto, ou algumas observações sobre a forma como as transformações que a cidade está a conhecer podem colocar em perigo esta tradição dos bichanos andarem pelas ruas, embora este lado negativo seja propositadamente descurado.

Percebe-se a ideia da cineasta, ou seja, realizar um filme completamente otimista e capaz de explanar a relevância dos gatos na cidade e a ligação especial destes com os humanos, bem como elaborar um retrato distinto de Istambul, algo que consegue efetuar com perícia. Se a cidade de Istambul aparece representada como um local de comunhão entre humanos e gatos, já Kedi surge como um documentário capaz de derreter o coração e de contribuir para que a vida do espectador se torne momentaneamente mais leve e agradável.


Aníbal Santiago

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