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«Thelma» por André Gonçalves

Há pouco tempo atrás, a atriz e realizadora Jodie Foster decidiu tecer duros criticismos ao cinema de super-heróis, afirmando que estes estavam a destruir os hábitos de visionamento dos seus consumidores. Ora, os media, tão tradicionalmente presos a uma época de likes e dislikes, de 0 ou 100, facilmente puxaram a história com um título “Jodie Foster odeia filmes de super-heróis”, quando Foster tinha acabado mesmo recentemente de pegar na narrativa-base destes universos – “com grande poder vem grande responsabilidade” – com grande efeito no último trabalho que realizou (Arkangel, pertencente à antologia Black Mirror, disponível num Netflix perto de si).

Ora, não se trata portanto de criticar este (sub)cinema de género, mas sim a falta de explorar todo o potencial para além destas narrativas – incluindo, a base essencial dos “super poderes”. Quando me perguntam que filme de super-heróis prefiro, hesito sempre entre três: um tradicional (Batman Returns, de Tim Burton), e dois capazes de originar um “oi?”: Unbreakable, de M. Night Shyamalan e Carrie de Brian De Palma. Para mim, o super-herói pode, no limite, existir num universo bem realista. Thelma junta-se agora a esta lista para formar uma sagrada trindade com os dois últimos. E sagrada é também aqui uma palavra-chave, mas já vamos aí. 

Tudo se inicia no frio. Uma ida à caça, uma mira suspeitamente apontada a uma criança pelo seu próprio pai (?). O que pode estar a acontecer? A ação retoma de um plano panorâmico de cima, que se vai aproximando, como se uma força nos puxasse para mais perto… vemos uma adolescente, a Thelma do título, ainda a tentar dar-se com a faculdade que escolheu. Um dia, na biblioteca, sob o olhar de outra rapariga, surge um ataque de pássaros que ao mesmo tempo desencandeia um ataque facilmente interpretado como epiléptico por parte da protagonista, que viremos a descobrir, via flashbacks, ter uma génese repressora.

Com o seu trio inicial de filmes belíssimos (mas não embelezadores) sobre a depressão e os efeitos que esta ou até um potencial suicídio (Louder than Bombs) pode ter na vida dos que mais amamos, Joachim Trier firmou um estilo próprio, mas que revela obviamente o estudo afincado de mestres. Regressando à Noruega, usa Hitchcock (Os Pássaros e Marnie sendo os dois grandes pontos de referênciapara esta ode ao mistério humano que é Thelma. E claro, o De Palma e Shyamalan dos acima citados Carrie e Unbreakable (o uso dos ditos flashbacks que vão ao nosso encontro para um clímax inesquecível), enquanto seguidores das gerações anteriores. Só que ao contrário da Carrie de Stephen King/De Palma, os poderes especiais de Thelma, desencandeados por uma paixão homossexual proibida ao invés de uma partida de mau gosto, são revelados não de uma forma orgásmica, mas mais cerebral, contida, nórdica. A repressão católica é a outra linha central em comum. 

Trier novamente chama o compositor Ola Fløttum para pontuar aqui e ali a (des)humanidade em redor, a repressão familiar, a tragédia de se amar e querer alguém ao ponto de se deitar tudo a perder. Tudo isto parece um aprimorar do que estava a ser cozinhado nas obras anteriores – e digo isto com o maior dos elogios. E Eillie Harboe, no papel protagonista, carrega o peso deste mundo, puxa-nos até nós, sofremos com ela, merece seguramente o crossover internacional. 

Uma história de passagem à idade adulta? Uma crítica ao fanatismo, à maneira como ainda vemos as mulheres na cultura (afinal, há espaço para mostrar que os ataques que Thelma sofre eram encarados como “histerias” no passado; ou bruxas…)? A adaptação cinematográfica de uma nova história do universo X-Men com a perfeição formal a que nunca tivemos direito? No limite até mais céptico e negro, uma crítica até à própria instituição que é o amor? Thelma atravessa tantas linhas, e torna-se particularmente ambíguo em certos pontos, que permite que caiba isto tudo, com uma arrumação impressionante, de quem já está num patamar de competência ao nível do génio que referência.

Obra-prima? Com dois visionamentos, hesito ainda em dar classificação perfeita, mas foram poucos os filmes nesta década a deixarem-me tão pasmado perante a carrada de temas que tinham para tratar, e a eficácia com que estes foram efetivamente puxados.

 

André Gonçalves