Terça-feira, 19 Março

«Mudbound – As Lamas do Mississípi» por Aníbal Santiago

Mudbound é um filme sobre os EUA de ontem e de hoje, que exibe sem contemplações o poder devastador do racismo, enquanto dialoga com os nossos tempos de forma inquietante e pertinente. Começa de forma titubeante, a usar e abusar do recurso ao voice-over para expor elementos sobre os personagens e o enredo mas, a partir do momento em que o destaque passa a estar maioritariamente em Jamie McAllan (Garrett Hedlund) e Ronsel Jackson (Jason Mitchell), dois militares que combateram na II Guerra Mundial, descola da mediania e revela-se capaz de provocar um turbilhão de emoções. A ligação forte e sincera que se forma entre ambos é um dos pontos fortes do enredo, embora a dupla enfrente contextos distintos no regresso aos EUA: Jamie lida com o sintoma de Perturbação de Stress Pós-Traumático, enquanto Ronsel, um afro-americano, depara-se com as demonstrações de racismo da sociedade que o rodeia e limita.

O filme tem como pano de fundo os EUA no período que antecedeu e sucedeu a II Guerra Mundial, tendo no seu centro os McAllan e os Jackson, duas famílias cujos destinos se cruzam no Mississippi, sobretudo a partir do momento em que os segundos começam a trabalhar para os primeiros. Os Jackson sempre estiveram no território, embora nunca tenham conseguido possuir as terras que trabalham, algo que Hap (Rob Morgan) procura alterar. Este é casado com Florence (Mary J. Blige), de quem tem quatro filhos, entre os quais Ronsel. Os McAllan vão para este território após Henry (Jason Clarke) adquirir uma quinta, algo que desagrada a Laura (Carey Mulligan), a sua esposa. O casal conta com a companhia das duas filhas e de Pappy (Jonathan Banks), o pai de Henry e de Jamie, um indivíduo extremamente racista e perigoso.

Se as dinâmicas entre os Jackson são pontuadas por episódios calorosos e dotados de sentimento, já a relação de Laura e Henry é marcada por alguma frieza, fruto da personalidade pragmática e pouco calorosa deste último, que contrasta com a faceta mais emotiva e vulnerável de Jamie. Hedlund transmite com competência a humanidade e fragilidade emocional do seu personagem, com o ator a exprimir as tormentas do antigo militar, a tensão sexual que existe entre este e a cunhada, bem como a forte amizade que o une a Ronsel. Também Rob Morgan compõe um personagem de dimensão assinalável, com o ator a deixar em evidência os fortes valores de Hap. Não podemos deixar ainda de destacar Carey Mulligan como Laura, uma das narradoras de serviço, com a ligação que esta forma com o cunhado e Florence a contribuir para alguns momentos dignos de atenção. No entanto, o maior destaque é Mitchell, com o ator a expressar a desolação do seu personagem e a dificuldade que este tem em readaptar-se a um contexto em que é tratado de forma mais desumana do que na Guerra.

 Esse “tratamento” tem o seu ponto de ebulição num momento intenso, revoltante e inquietante, em que o trabalho de câmara e montagem, a iluminação e as interpretações contribuem para o choque que é provocado no espectador. Dee Rees exibe paradigmaticamente as características nocivas do racismo, seja em demonstrações ferozes, ou em atos aparentemente inócuos, com estes momentos a conversarem estranhamente com a atualidade, embora tenham como pano de fundo um período relativamente distante. A época em que se desenrola o enredo é representada com competência, seja através dos diálogos, do guarda-roupa, ou da decoração dos cenários, com Mudbound a transportar-nos para o interior deste território e das suas especificidades, enquanto aborda temáticas relacionadas com a segregação racial, as dinâmicas familiares, as desigualdades sociais e as dificuldades sentidas pelos militares no regresso a casa após longos períodos de ausência.

O argumento, inspirado no livro homónimo, é competente a desenvolver as temáticas mencionadas e a forma como as duas famílias estão ligadas pela lama que povoa os cenários, enquanto a banda sonora exacerba a mescla de melancolia, aspereza e esperança que pontua o enredo. É certo que nem tudo resulta, seja o uso pouco pragmático da narração em off, ou uma subtrama que envolve um assassinato que pouco ou nada acrescenta ao enredo. No entanto, quando encontra o seu rumo, Mudbound revela-se um drama relevante e necessário, que sobressai não só pelas suas mensagens, mas também pelo seu valor cinematográfico.


Aníbal santiago

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