Terça-feira, 23 Abril

«Cherchez la femme» (Há quem prefira as de véu) por Aníbal Santiago

 

Comédia de enganos e de costumes que se envolve por temáticas relacionadas com o fundamentalismo islâmico, o travestismo, os amores impossíveis e efetua comentários de foro social com enorme acidez, Cherchez la femme utiliza sagazmente o humor para abordar assuntos melindrosos e despertar reflexão. O resultado final é uma comédia screwball recheada de ritmo, bons gags, imenso humor, inteligência e alguns diálogos bem construídos, na qual os extremismos religiosos são satirizados, o machismo e a repressão sobre a mulher são criticados, os diversos elementos do elenco revelam um enorme acerto nos timings cómicos e os mal-entendidos assumem características que tanto têm de perigosas como de hilariantes, sobretudo quando se forma uma espécie de triângulo amoroso entre Armand (Félix Moati), Leïla (Camélia Jordana) e Mahmoud (William Lebghil).

Armand e Leïla estudam na Sciences Po, namoram, escondem o romance dos familiares e planeiam fazer um estágio nas Nações Unidas. Mahmoud esteve dez meses no Iémene, onde se tornou um fundamentalista islâmico, algo que o conduz a proibir Leïla de sair de casa sem a sua autorização e de estar com Armand. O regresso deste personagem revoluciona temporariamente o quotidiano do casal, embora o protagonista trace um plano aparentemente infalível: colocar um nicabe e fingir que é Xerazade, uma mulher que necessita da ajuda da irmã do primeiro. O resultado? Armand não só consegue reunir-se regularmente com a amada, mas também despertar inadvertidamente a atenção do irmão desta ao ponto do mesmo querer casar consigo. A casa desta família, um cenário que é aproveitado de forma exímia, torna-se assim palco de encontros furtivos e reuniões desconcertantes, enquanto Armand tenta manter o disfarce, seja a aprender os códigos de conduta ou a promover uma série de fugas que acentuam a faceta burlesca e delirante desta obra cinematográfica.

Sou Abadi entra pelos caminhos de Some Like it Hot, uma referência assumida desta estreante na realização de longas-metragens de ficção – seja quando coloca um indivíduo a apaixonar-se por um dos elementos que se veste de mulher ou na ocasião em que encontramos um personagem a utilizar o travestismo para alcançar os seus objetivos. Do filme de Billy Wilder, Cherchez la femme partilha ainda a inteligência e o cuidado com a composição dos protagonistas, enquanto desafia as convenções, subverte algumas das nossas expetativas e expõe as incoerências e o lado pernicioso dos extremismos, bem como o conservadorismo associado ao Islão. Pelo meio, não faltam uma série de gags, momentos e diálogos que captam a atenção e despertam facilmente o riso, seja pela sua faceta inesperada, pela perspicácia, pela simplicidade, ou pelo tom farsesco: uma discussão sobre aquilo que separa os sunitas e os xiitas ganha contornos divertidíssimos, enquanto um ato sério e machista como Mahmoud engolir o chip do telemóvel da irmã logo adquire uma faceta hilariante.

Temos ainda um gag a envolver a incapacidade de quase todos os personagens em tratarem Fabrice (Oscar Copp), um amigo de Mahmoud, pelo seu novo nome, ou a sequência que envolve o “treino” de Armand para parecer uma mulher dedicada ao Islão (num dos vários momentos em que o trabalho de montagem e de câmara contribuem para o dinamismo que Abadi imprime ao enredo). Félix Moati é um dos destaques do elenco, sobretudo quando apenas pode utilizar os olhos e a fala feminina de Xerazade para se expressar, enquanto Camélia Jordana imprime uma personalidade forte à personagem que interpreta, uma jovem que está longe de pretender seguir os rumos do irmão. William Lebghil parece divertir-se imenso e diverte-nos pelo caminho a compor este indivíduo que coloca em evidência a facilidade com que as ideologias extremistas podem penetrar na mente de alguém marginalizado pela sociedade, embora a entrada em cena de Xerazade comece a amolecer as convicções religiosas deste personagem.

O trio de protagonistas conta ainda com a companhia de uma série de personagens secundários de relevo, sejam os refugiados que recebem apoio do casal, ou Sinna (Carl Malapa), o irmão mais novo de Leïla e Mahmoud, ou os pais de Armand (Miki Manojlović e Anne Alvaro), um casal de intelectuais e refugiados políticos do Irão. Estes exibem uma enorme desilusão em relação ao rumo que o seu país tomou com a Revolução Iraniana, algo que leva o jovem a esconder o romance dos pais, sobretudo da mãe, uma feminista vivaz e incoerente. Abadi aproveita ao máximo as dinâmicas entre estes elementos, enquanto desenvolve a premissa do filme de forma enérgica e coloca os personagens a protagonizarem uma série de situações rocambolescas, sempre sem abdicar de abordar temas sérios e pertinentes, ou de efetuar comentários nas entrelinhas. Estamos assim diante de uma das agradáveis surpresas deste final de ano cinéfilo.


Aníbal Santiago

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