A grande epopeia literária portuguesa, capaz de sombrear o então digno do título Os Lusíadas do nosso Luís Vaz de Camões. Mas as infelicidades ditaram a obra, ou será antes Obra, e a reduziram-na ao elenco secundário, porém, a sua magnitude e valor histórico colocam-no num patamar que a imaginação do célebre poeta nunca atingira, aliás, porque não pensar que nestas páginas reside um pouco de fantasia com os relatos viventes de um explorador, e quiçá, corsário na sua negritude forma.

Contudo, tal como o seu “rival” Os Lusíadas, Peregrinação é uma obra literária infilmável, devedora de uma imaginação e síntese descritivo em tempos em que o Cinema nem sequer residia nos sonhos mais longínquos. Nesse aspeto, João Botelho, tão fascinado pelo património cultural e artístico português tende a dar um “passo maior que a perna”. 

Nem mesmo os ensinamentos de Manoel de Oliveira, pelo qual se rege religiosamente, o conseguem salvar. “Se não há recursos para filmar a carroça, filma a roda, mas a filma-a bem”. Sob esse signo, Botelho tenta retratar esta expedição para o Oriente para além de Marco Polo, a miopia que tende em adereçar à imaginação do espectador, o “faz-de-conta” que se apodera deste face à limitada envergadura dos cenários e do exotismo por vezes conotado como postais turísticos. A miopia planificada, algo que poderíamos desculpar de forma a desafiar o nosso intelecto, é um fruto “podre” perante as verdadeiras intenções do realizador: trazer à luz esta importante peça da nossa História, renegada nas escolas, e da cultura geral nacional.

Fernão Mendes Pinto foi assim esse explorador do infinito, designação que se atribuía ao desconhecido; um navegador infortunado, em  busca das riquezas profundas, mas nunca a glória eterna. Os seus azares levaram-no ao encontro de regiões exóticas, povos enraizados em culturas distintas, um mar de possibilidades que no cinema de Botelho transforma-se em meras ocasionalidades. Felizmente, o retrato de época, o colonialismo que vem surgindo, é visto com a ambiguidade que merece – nesse aspeto eis um exemplo concreto: existe uma dicotomia envolvente na figura de Mendes Pinto, como um objeto quixotesco, oscilando entre o “bom navegador” ou o pirata sedento pela sua cruzada (excelente escolha este Cláudio da Silva). Segundo Botelho, foi tomada a liberdade de apropriar a ideia de Aquilino Ribeiro nessa transposição. Um desafio subliminar ao ensino dado na educação portuguesa, a cada vez mais rara imagem do “bom colonizador”.

Contudo, longe do “bom colonizador”, existe neste filme de Botelho o “bem intencionado”, a polivalência cinematográfica, algures entre o teatral ou o fulgor épico nunca adquirido no nosso panorama audiovisual, transformam a Peregrinação numa viagem de sabores. Um “cata-vento” de diversas facetas que resultam em máscaras no tratamento do “monstro” gerado por um “rato”.

No sentido artesanal, ou como se diria em “bom” português, na vaga do “desenrasque”, Peregrinação resultará num futuro próximo numa espécie de case study, o épico fora dos tempos salazaristas e o território próprio do cinema de Oliveira, sem nunca abandonar totalmente o risco que raramente se toma na nossa indústria. Por outras palavras, a Botelho é lhe merecido a vénia da irreverência, sendo que o ato valerá mais que o gesto em si.