Sexta-feira, 19 Abril

«Nothingwood» por Aníbal Santiago

Algures no Afeganistão existe um realizador bastante profícuo, que não se cansa de explanar o seu amor pela Sétima Arte, mesmo que para isso tenha de colocar a sua vida em perigo. Os conflitos ameaçam tudo e todos, a destruição e a morte pairam pelo território, mas este cineasta quer é fazer aquilo que mais gosta, ou seja, realizar filmes, algo exposto de forma bem viva ao longo de “Nothingwood“. Com diversos trabalhos para a rádio e a televisão sobre o Afeganistão, a realizadora Sonia Kronlund centra uma parte considerável das atenções do documentário em Salim Shaheen, um cineasta afegão peculiar e carismático, apaixonado pelo cinema e pelo espetáculo, que não sabe ler nem escrever, exerce a sua profissão praticamente sem recursos e apresenta uma joie de vivre surpreendente. O contexto é delicado, embora Shaheen procure exercer o seu ofício sem medos, pronto a confiar o seu destino a uma entidade superiora, enquanto arrasta consigo uma energia notória e conta com uma equipa sui generis.

O território onde decorrem as filmagens conta com a presença de minas? Não importa, Shaheen aventura-se pelo mesmo na companhia da sua equipa. Tudo é muito rudimentar, quase amador, desenvolvido com orçamentos limitadíssimos e enormes doses de carolice, enquanto o realizador expõe a sua faceta extrovertida, infantil e bonacheirona, embora a espaços seja notório que está a representar para a câmara. A equipa alinha no jogo, enquanto ficamos diante da abordagem de episódios que permitem não só incutir uma faceta leve e pitoresca ao filme, mas também abordar temáticas relacionadas com o papel da mulher, a presença dos Talibans, a homossexualidade, a guerra, entre outras. Note-se quando encontramos Kronlund a efectuar questões subtis sobre a ausência de figuras femininas (o protagonista nunca deixa as suas duas esposas e as suas filhas aparecerem), ou a expor situações relacionadas com a dificuldade das mulheres em entrarem no mundo do espectáculo, com este “silêncio” a reforçar o conservadorismo desta sociedade.

Outra das temáticas abordadas é o papel da guerra no quotidiano destes indivíduos. Veja-se quando Shaheen relata o episódio em que um míssil invadiu o espaço onde estava a filmar, tendo provocado a morte e a destruição, ou os pequenos pedaços do contexto que Kronlund insere no interior do documentário. Estes trechos contribuem para incutir uma porção de ingredientes mais negros ao filme ao mesmo tempo que permitem exacerbar a dicotomia entre a força de viver destes indivíduos e a realidade desoladora que os rodeia. As referências de Shaheen são os filmes de Bollywood e de Kung Fu, com o cineasta e intérprete a contar com mais de cem películas no currículo e uma popularidade assinalável, inclusive entre os Talibans. Diga-se que alguns dos seus trabalhos contam com trechos expostos ao longo de “Nothingwood“, com a maioria a sobressair pela ingenuidade, as interpretações exageradas e os efeitos quase tão manhosos como os seus posters.

Kronlund acompanha este homem dos sete ofícios (acumula funções de realizador, produtor e ator) durante as filmagens de uma obra autobiográfica, em Bamyian, com a presença da cineasta a ser sentida. Esta envolve-se pelo meio da equipa ao mesmo tempo que capta o entusiasmo destes elementos e a maneira muito própria como Shaheen rouba as atenções. Quem também sobressai é Qurban Ali, um actor de gestos efeminados e exuberantes, que se gosta de vestir de mulher e de se maquilhar, com os seus actos a apenas serem aceites desde que sejam efectuados no âmbito do trabalho, ou os homens não tivessem de ocupar uma parte considerável dos papéis femininos. Também as relações matrimoniais são abordadas, com “Nothingwood” a aventurar-se por uma série de questões relacionadas com a cultura e a sociedade deste país em convulsão, tendo como ponto de partida a estrela de série Z.

As filmagens de uma (ou mais) das películas de Shaheen surgem como uma forma de acompanharmos o modo de filmar deste indivíduo e as suas dinâmicas com a equipa, com a vedeta afegã a surgir como um personagem e tanto, dotado de alguma complexidade e imensa vivacidade. Para o cineasta, o cinema surge como uma profissão, uma paixão, um modo de evasão e de expressão, com o realizador a estar no centro do documentário, enquanto Kronlund traz-nos uma face menos conhecida das representações do Afeganistão, sempre sem descurar a realidade intrincada que envolve esta nação.

Aníbal Santiago

Notícias