Terça-feira, 19 Março

«mother!» (Mãe!) por André Gonçalves

De acordo com a “poesia sagrada” da Bíblia, Deus terá criado o Mundo em sete dias; Darren Aronofsky, no seu 7º filme, criou uma primeira versão deste filme-mundo chamado “mother!” em cinco. O que é “mother!”? Não é o filme que está a ser vendido. É mais que isso. Ou menos que isso, dependendo do que trazemos connosco. 

É, para começar, um fortíssimo candidato a filme mais ousado a ser lançado por um grande estúdio (uma grande vénia à Paramount que deu ao autor total poder para prosseguir com o seu génio/demência) na era contemporânea do cinema. Sim, houve Lars Von Trier, Pasolini, etc., mas esses nunca tiveram um grande estúdio para lhes fazer as vontades e lançar os seus filmes em milhares de salas nos Estados Unidos. Estejamos contra ou a favor do seu resultado – e este um dos derradeiros filmes de amor-ódio que poderemos assistir no nosso tempo, nisto estaremos de acordo – a ousadia desta visão demente, superando até o seu “The Fountain” em ambição, deveria por si só ser aplaudida.   

Aronofsky sempre tomou esse ensinamento comum dos seus antepassados artísticos: se não estás a fazer pessoas aplaudir ou apupar, não estás a fazer bem. E aqui decide apostar tudo, numa ato incendiário, febril, que, imaginamos, faria/fará os seus heróis, aqui bem presentes na forma ou conteúdo, sorrir (Polanski novamente – via “A Semente do Diabo” desta feita, Kubrick…). Conseguiu exatamente o que queria: apupos e palmas. 

*ligeiros spoilers temáticos de seguida*

Sem querer estragar a diversão e as tonturas, na casa de “espelhos” de “mother!” cabe tudo o que quisermos trazer. Ou nada, se assim o quisermos. As personagens têm nomes minimamente sugestivos: Javier Bardem é “Him”, Jennifer Lawrence é a “mãe” (letra minúscula no título, terá também uma explicação para quem a quiser fazer), Michelle Pfeiffer é “Woman”, Ed Harris é “Man”. E o filme está claramente partido em duas metades, antes da gravidez e depois da gravidez (A Semente Divina?), sugerindo, numa das interpretações mais fáceis, que o autor decidiu recontar a história da Bíblia (Antigo Testamento e Novo Testamento), ou o nascimento da religião como culto muito próximo ao culto que temos hoje em dia das celebridades. A alegoria da religião é a que faz logo imediato sentido, com a eletrificante Pfeiffer a ser uma Eva lasciva, desejosa do fruto proibido (um cristal muito particular, um desejo cíclico) e o sempre subestimado Harris a ser Adão. E depois, um filho que mata o outro (Caim e Abel). 

Se tudo isto já parece demasiado violento, eis que entra então o último ato em andamento. E com ele entra então toda a loucura, e mais alegoria. 

Passamos então de uma comédia negra arrepiante para um terror , se alegórico, já sem jump scares e com uma decisão criativa em particular que nunca imaginaríamos ver a luz do dia em Hollywood, num ato de comunhão que nunca esqueceremos. Poderá esta afinal ser a história do mundo onde vivemos? A história de várias Criações: na dimensão bíblica (acima explicada), terrestre/ecológica (mãe Terra a ser violada pela raça humana), artística (processo de criação e desenho de personagens), ou amorosa (invasão da vida privada pelo social, não necessariamente via fama, mas via redes sociais online)? 

Mas se o espectador pode pensar que isto é tudo tentativa de conteúdo sem forma, direi que também haverá quem pense exatamente o contrário – afinal, formalmente, “mother!” não poderia ser melhor. Ao longo de todo este ensaio, temos um trabalho de câmara ondulante, que obrigou a meses de ensaios, sempre focado na figura feminina ou no que ela vê, bem auxiliado, novamente pela fotografia de 16mm dirigida por Matthew Libatique, o design da casa “viva”, e o som que em todo o caso é toda a banda sonora que temos aqui presente. Lawrence é assim a proxy do espectador, a mulher passiva conforme Hollywood também a vê (à mulher no cinema, isto é): a musa, a virgem, a puta, sempre em mutação. É um trabalho fabuloso de imersão numa personagem que pode no fundo ser uma mera abstração para ideias que dificilmente encaixaremos num mero visionamento. (Na vida real, Lawrence acabou por se juntar com o criador derradeiro desta visão do mundo que vivemos, o poeta visual, também ele com um ego considerável comparável à personagem de Bardem: Deus Aronofsky) 

Mais que um filme, “mother!” é uma experiência artística que sangra, e nos marca para o resto da vida. Para o melhor ou para o pior – sobretudo se alegorias e um terror inimaginável para quem vive de jump scares não for o vosso prato. Estejam avisados. 

André Gonçalves

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