Terça-feira, 19 Março

«Beach Rats» por André Gonçalves

Desde o flash clínico inicial da selfie na escuridão do seu protagonista “fora do meio” até ao bater de coração num final pontuado por fogo de artifício, a rebentar, “Beach Rats”, justamente premiado no Festival de Sundance para a sua realizadora Eliza Hittman, garante-nos uma viagem e meia. Da escuridão provocada pela solidão de alguém que “não sabe sequer do que gosta”, que busca em chats eróticos via webcam maneiras de se (auto)satisfazer, para outra escuridão, ainda mais arrepiante, se lá está, posta no clima publicamente “romântico” de um fogo-de-artifício de sexta-feira.   

Frankie (interpretado por um impressionante Harris Dickinson, um britânico que para além de ser ator, já realizou e escreveu um trio de curtas-metragens) é um adolescente de 19 anos que vive com a mãe, o pai acamado (vítima de cancro) e a sua irmã mais nova, que começa a despertar para a sexualidade, e a despertar o seu olhar de inveja por algo que não consegue atingir publicamente. Com o seu “gang” diverte-se a usar drogas, e é socialmente obrigado a arranjar uma namorada, para também ser aceite pelo “gang” de amigos e para, assim, satisfazer as expetativas destes e da sua família. 

Se a existência armariada de um protagonista é dos dispositivos mais usados ao longo do cinema queer, Eliza Hittman mostra desde cedo um olhar único, diferenciador, aliado ao protagonista em grandes planos da sua cara e corpo, mas também suficientemente aberto para que o espectador entre e se consiga rever numa situação que pode ou não ter sido a sua. A união com a diretora de fotografia Helène Louvart (colaboradora de Wim Wenders e Agnés Varda) é outro grande trunfo, num filme que apresenta uma janela para os subúrbios solarengos/noturnos de Brooklyn raramente aberta. Talvez haja quem se lembre aqui de fazer uma ponte com os filmes de Larry Clark num retrato de juventude não necessariamente pobre que se entretém a vadiar, e a experimentar sexo e drogas, mas a Hittman, pese a “tragédia” iminente, interessa-lhe mais desarmar-nos que chocar-nos. Missão cumprida, para mim. 

Ganhe ou não um prémio neste festival, “Beach Rats” é prova absoluta em 2017 que o cinema independente norte-americano consegue ainda pegar em narrativas completamente tradicionais, e torcê-las para nos apresentar objetos singulares.   

André Gonçalves

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