Terça-feira, 19 Março

«God’s Own Country» por André Gonçalves

A herança de 12 anos de “Brokeback Mountain” ganha finalmente um herdeiro mais do que interessante, se por vezes demasiado imitador do template adotado por Ang Lee a partir do conto de Annie Proulx.

Francis Lee escreve e realiza a sua primeira longa-metragem sobre dois rapazes que se conhecem num cenário rural no norte da Inglaterra. Quando o romeno Gheorghe vem trabalhar para ajudar a quinta da família de Johnny, os dois jovens homens são forçados a passar uma semana nos montes que se revelará intensa e despertará assim um conjunto de sentimentos abafados no círculo pequeno que os rodeia.

A vida e o amor proibido no campo são ambos difíceis, e Lee, tal como o outro Lee, não tem medo de estimular os nossos sentidos fora do tradicional campo da visão e audição que é o cinema. O cheiro de um casaco ou o toque da camisola do homem que abandonou a casa (aqui talvez o ponto onde o filme se aproxime mais da imitação) seguem-se ao anterior cheiro de uma pele de ovelha de uma cria morta dada a uma outra cria para fazer com que a ovelha a “adote”. O arrancar de uma crosta que estimula a “lambidela” dessa mesma ferida andando de mãos dadas com uma sequência onde o protagonista é forçado a perder o controlo, já sem o simbolismo da ferida física mas a remeter para o trauma interior, a deixar outras mãos a percorrer o seu corpo, sem a mecanização de um dos muitos engates ocasionais, os quais servem de óbvio refúgio, tal como o álcool. 

Esta mudança de capa (de crosta) para sobreviver no mundo é afinal o tema central desta história. Inicialmente sobre uma capa dura, de armário, imposta pelo próprio pai, Johnny embebeda-se todas as noites para fugir à realidade solitária onde foi forçado a ficar. Tendo visto amigos próximos a partir para a cidade para estudar na faculdade, a sua vida é ditada pelo trabalho na quinta. Até ser obrigado a despir-se, primeiro a roupa, e depois o coração, esse objeto tão resguardado por um forasteiro, para finalmente parar de se sabotar e poder também ele saborear o que realmente sente. Aliás, qualquer um dos quatro personagens (o casal e o pai e a avó de um deles) encontra-se numa mudança de capa dura para capa mais maleável, influenciados uns por outros – Johnny por Gheorghe, os familiares por Johnny, Georghe por Johnny.

Francis Lee investe também em pequenos paralelos entre a natureza que rodeia o protagonista e o seu estado de espírito, como pôr-nos a observar um pássaro preso a uma gaiola, ou uma borboleta morta. A banda sonora, essa, é de uma forma correta reservada para os minutos finais. Curioso que no mesmo ano em que o terror de Hans Zimmer em “Dunkirk” invadiu as salas, tivemos outros “contraexemplos” (Lady Macbeth) que decidiram abdicar da banda sonora em 90% da película numa abordagem mais naturalista, confiando plenamente no trabalho dos seus atores. O realizador teve também a sorte de ter encontrado um par de atores desconhecidos que respondem idealmente a este naturalismo: Josh O’Connor e o quebra-corações Alec Secareanu.

Um crowd pleaser querido (mas não lamechas!) a merecer atenção comercial, e o estatuto de filme de abertura para esta 21ª edição do Queer Lisboa. 

André Gonçalves

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