Quinta-feira, 28 Março

«I Am Michael» (O Meu Nome é Michael) por Duarte Mata

Na entrevista que o colaborador do C7nema Hugo Gomes fez a Paul Vechialli, é possível observar o desagrado do realizador no que toca à importância que a crítica cinematográfica contemporânea confere à política dos autores. Quando questionado sobre o facto de achar Renoir sobrevalorizado, Vechialli responde que até os grandes cineastas têm gestos vulgares. E que esses gestos vulgares têm que ser reconhecidos como tais, acrescentando, de uma maneira efusiva: “Hoje é preciso dizer-se “há um filme genial com um plano idiota”! Ou então “há um filme de um realizador medíocre com três planos sublimes”!”. Se retomo este excerto é porque estou convencido de que O Meu Nome é Michael enquadra-se, absolutamente, na segunda categoria. Não devido a três planos, mas apenas a um travelling.

O filme de Justin Kelly é baseado na história verídica de Michael Glatze, antigo homossexual e ativista LGBT que abandonou o seu namorado e as suas causas para entrar na Igreja Mórmon, o que resultou em fortes críticas pela comunidade que havia previamente defendido. No que toca à adaptação cinematográfica, muitos críticos têm discutido o condensar dos respetivos eventos cronológicos do seu protagonista e em como estes se associam às várias fases de dúvida pela qual passou. Mas há um aspeto que creio que mereça ser mais salientado. Que é o seu lado formalmente religioso e a maneira como delineia o caminho para este abraçar de uma nova fé, construída a partir de um símbolo que culmina num movimento de câmara “sublime”. 

Essa religiosidade está presente desde os primeiros minutos do filme, pela mise-en-scène de Kelly, nomeadamente na cena em que Michael e o seu parceiro vão visitar o local onde foram espalhadas as cinzas da mãe do protagonista. A maneira como o espaço é apresentado, por um plongée absoluto (isto é, o ponto-de-vista do Céu, mais tarde repetido em nova visita ao local) é o primeiro sinal daquilo que está a aproximar Michael da sua metamorfose interior: a possibilidade de estar a ser observado pela entidade materna. Essa entidade é, de algum modo, transparecida através do contacto físico que o protagonista estabelece com a terra e as árvores do local, até culminar num encontro imaginário com a referida figura, na segunda metade.

Em cima: Michael, juntamente com o namorado, visita o local onde as cinzas da mãe foram espalhadas. Em baixo: Michael revisita o local, desta vez sozinho. Em ambas as ocasiões, o espaço é apresentado por um plongée absoluto.

É sob este aspeto religioso na associação entre a forma e conteúdo da obra que creio que se enquadre o símbolo que mais é destacado. A espiral. A figura geométrica surge pela primeira vez numa conversa de café onde Michael entorna xarope sobre as suas panquecas, em movimentos circulares. “A espiral é um símbolo, algo que não tem começo nem fim.”, dirá, enquanto efetua este gesto. E só há um ente ao qual se pode aplicar esse conceito: Deus. Ou seja, a maneira pela qual Kelly inteligentemente representa esta “ascensão espiritual” (a espiral é, afinal, a forma sob a qual são desenhadas as escadas em caracol) é com recurso a esta metáfora visual.

Em cima: Michael desenha uma espiral com o xarope nas panquecas. Em baixo: Michael desenha uma epiral no seu caderno.

É por isso que é um momento de absoluto brilhantismo cinematográfico quando, na ocasião mais importante da narrativa, a câmara mimica a referida figura geométrica, efetuando um travelling que toma Michael como o “pólo” a circundar. Simultaneamente podemos ouvir um locutor de rádio conservador a discutir tópicos mais “sensíveis” e de como a posição tolerante do indivíduo face aos mesmos pode levá-lo a uma eternidade de sofrimento. E é nesse instante que Michael toma o passo decisivo de abandonar as suas anteriores convicções e entrar numa vida de devoção. O protagonista chegou ao centro (ou seja, o topo no sentido arquitetónico) da espiral e logo o seu zénite espiritual. O cineasta que consegue fazer isto, tornar uma representação em gesto, transpor a simbologia de uma imagem à arte da encenação, é completamente merecedor de respeito. 

Por isso, apesar das tiradas panfletárias no seu argumento indulgente, apesar de uma barreira emocional com a audiência que não chega a ser devidamente ultrapassada, apesar de O Meu Nome é Michael ser, para todos os efeitos, um filme medíocre durante uma hora e meia, isso não o impede de conter vinte e quatro segundos do mais brilhante cinema. É mais do que se possa dizer de muita da concorrência.


Duarte Mata

 

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