Terça-feira, 19 Março

«Pieles» por André Gonçalves

Desde cedo que o cinema foi uma arte para mostrar tanto o “normal” do nosso quotidiano, como também se tornou um meio para mostrar o que estava à margem desse normal, os chamados “freaks”. Foi já em 1932, com um filme com essa alcunha (Freaks, de Tod Browning), que o cinema melhor espremeu esta “queerness“, ao recrutar um elenco repleto de seres “imperfeitos” segundo o que esperamos em termos canónicos daquilo que um ser humano deva conter… colocando-os numa história de amor e traição mais normalizada, tornada ainda assim peculiar pela singularidade deste elenco. 

E é precisamente nesse clássico de Browning que pensamos quando assistimos a esta primeira longa-metragem do argumentista e realizador Eduardo Casanova, presente na secção Panorama do Festival de Berlim deste ano (agora disponível no catálogo da Netflix Portugal). A agenda deste “Pieles” é de facto bem simples à superfície: o seu título pertence à mensagem de elogio ao interior do ser humano vs o exterior transiente, ecoada por uma das suas personagens que diz: “Las pieles cambian, las pieles se operan, se transforman, la apariencia física no es nada…” (as peles mudam, as peles operam-se, a aparência física não é nada…)

Mas por detrás deste “martelanço” temático, Casanova traz-nos um olhar muito único – certamente devedor do “pós-modernismo pop” de artistas como David LaChapelle, sim, repleto de cor-de-rosa e roxo (cores associadas tradicionalmente ao romantismo e à transformação respetivamente – o que faz pleno sentido temático aqui, além de cores por si só transgressoras…). 

Um olhar único para personagens únicas, portanto. E é obviamente ajudado (tal como Browning) pelos seus “freaks” de serviço e pela nossa impossibilidade em estabelecer uma reação social imediata e clara perante muito do que observamos. Entre o conjunto de seres socialmente imperfeitos, temos um rapaz que deseja cortar as suas pernas, um queimado, uma anã, uma rapariga sem olhos, e, talvez no retrato mais icónico deles todos, uma jovem adolescente com o ânus e a boca trocados. Casanova não é Browning, mas partilha, tal como esse, e mais recentemente o Walter Hill (d’A Missão [ler crítica], atualmente em cartaz), um gosto pelo politicamente incorreto, pelo raspar da pele ferida. Sentimos que não devemos propriamente rir-nos, mas “Pieles” joga alguns elementos cómicos pelo caminho, com objetivo claro de desordenar ainda mais o nosso pensamento social. Missão cumprida nesse ponto. 

É um filme tão acessível quanto maior for a capacidade do espectador em aceitar o que está à sua margem. Na sua desordem que nos impõe, é um filme que joga até contra si mesmo (na luta constante entre a mensagem central politicamente correta, e a sua abordagem que foge a essa corretidão); mas é precisamente nesse contraditório, nessa “queerness” autêntica, que o recebemos de braços abertos face a outras encomendas livres de perigo. 

André Gonçalves

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