Terça-feira, 19 Março

«The Assignment» (A Missão) por Duarte Mata

Numa época em que as questões de género e identidade assumem (felizmente) uma maior primazia em colóquios e debates, recordamos o significado do prefixo “trans-”, isto é, um “elemento que significa além de, para além de, em troca de…” *. Ou seja, algo que pretende reafirmar-se enquanto entidade própria e complexa, ao invés da redução à condição inerente com que se vê concebida. Um filme como o mais recente de Walter Hill, A Missão, pretende abordar o tópico da transgeneridade duma perspetiva liberal, enquanto joga com o questionamento sobre a possibilidade duma mudança completa e radical do sexo intrínseco, tentando demolir os critérios pré-determinísticos das escolhas e trajetos que este reserva ao ser humano. Filme de género? Filme transgénero.

Não se tem encontrado muito esta referência, mas a intriga em torno de um cirurgião plástico (neste caso, uma cirurgiã interpretada por Sigourney Weaver) que captura um homem e lhe provoca uma mudança de sexo com meros propósitos revanchistas já foi abordada no passado por Almodóvar em A Pele Que Habito. Mas a obra do cineasta espanhol era demasiado “certinha” e necessariamente portadora de um discurso panfletário ao politicamente correto neste campo, o que chegava a pôr em causa a construção fílmica narrativa que precedia a derradeira cena. Não pretendia questionar nem incomodar o espetador com a sua alegoria, apenas avisá-lo de que estava ali como portador da própria. Para nossa sorte, Hill ganha pelo seu mal comportamento, não querendo que o seu filme opte pela vitimização ou empatia por nenhuma das suas personagens, o que talvez explique as subsequentes reações controversas que despoletou no interior das comunidades LGBT.

A controvérsia é logo suscitada pela escolha deliberada de pôr Michelle Rodriguez a interpretar o papel masculino do começo, onde a barba postiça e a reposição digital do seu corpo por outro másculo provam-se opções, no mínimo, perturbadoras para levar à suspensão da descrença. Mas é também aí que o realizador toma consciência da reputação que antecede a atriz que tem à disposição. Rodriguez é célebre pelos seus papéis de mulher durona (Avatar e a série Perdidos, por exemplo), de alguma forma respostas ao “universo masculino” do cinema de ação dos anos 80 que Hill ajudou a consolidar. Aqui, pelo contrário, ao fazer de Rodriguez parte desse universo masculino afetado pela inversão forçada do género, obriga-a a encontrar e a construir a sua feminidade na personagem, que, inconscientemente, já está presente ainda antes da dita “transformação”. Daí se justificam aquelas longas cenas de contemplação ao seu corpo feminino diante de espelhos, como se procurasse averiguar o que este representa enquanto símbolo psicológico, emocional e, finalmente, social. E é quase em tom cínico que se conforma em aceitá-lo como instrumento sensual na 3ª parte (ao invés de encará-lo como uma limitação), só assim conseguindo alcançar a plena realização da sua retaliação.

Mas não é só a nível de personagens que Hill leva esta sua (trans)figuração do tema. Apesar de parte da sua competência técnica parecer vir inspirada de um livro de banda-desenhada (as transições na montagem ou os breves frames de cenas desenhados a tinta da china), o argumento remete para citações de Shakespeare (nomeadamente Hamlet, outro protagonista que fez da vingança o seu propósito fulcral de vida) e Poe (na reiteração insistente do termo nevermore, isto é, a irreversibilidade, neste caso, sexual, e que era feito leitmotiv no seu poema The Raven). Com isto, Hill funde a literatura estigmatizada como “inferior” (há por aqui muito, muito pulp) com a clássica, isto é, comumente aceite como “superior”. Ou ainda, os planos com a personagem da cirurgiã (quase sempre em cenários azulados, de dia) a contrastarem com os de Rodriguez (vermelho-alaranjados e noctívagos) que reforçam também a tese de que os opostos tentam coexistir na mesma entidade fílmica, revelando a argúcia da sua mise-en-scène. Repetimos a questão: Filme de género? Filme transgénero. E se, como é dito a certa altura, “Uma pessoa é o género que acredita ser.”, vamos mais longe e afirmamos que o mesmo se passa na relação do espetador com o filme que assiste.

Duarte Mata

*Definição obtida a partir de Priberam.pt

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