Terça-feira, 19 Março

«Felicité» por Paulo Portugal

Alain Gomis, o francês de origem senegalesa, continua a trilhar um cinema de procura de uma certa identidade cultural, ao mesmo tempo que explora o certo realismo social das ruas de Kinshasa, onde ao cair da noite tudo se torna um pouco mais suportável, sobretudo depois da entrega aos ritmos e aos vapores etílicos.

Nesta sua quarta longa-metragem, a segunda em competição Berlim, depois de Aujourd’hui, em 2012, serve-se do drama pessoal de uma cantora de bar nocturno, para mostrar esse mundo feito de contrastes, mas onde as pessoas não têm outra alternativa a não ser adaptar-se. Felicité (impressionante Véro Tshanda Beya Mputu no seu primeiro trabalho como atriz) é essa intérprete de olhos tristes, que aceita a sua condição sem juízos ou julgamentos. Mesmo quando sofre o duro revés de saber que o filho teve um grave acidente de moto.

Ao aperceber-se que terá de arranjar um milhão de francos locais (aproximadamente 1500€) para a operação do filho, envereda numa luta contra o tempo para o salvar. É aí que acaba por aceitar a ajuda do mulherengo e alcoólico Tabu (Papi Mpaka), não só para ajudar a concertar as avarias crónicas do seu frigorífico, mas também para fazer uma espécie de part time da sua vida.

Neste frenesim que nos faz lembrar Rosetta, dos manos Dardenne, Gomis descreve com dedicação os dilemas de uma grande fatia da sociedade senegalesa, com a particularidade de conseguir imprimir uma certa magia e dimensão quase épica desse povo. O problema é a narrativa desta co-produção entre a França, Senegal, Bélgica, Alemanha e Líbano, acaba por perder parte do seu fulgor, sobretudo depois do filho sair do hospital. É nessa altura que o filme tenta ainda desesperadamente agarrar-se a uma âncora para cumprir os seus 90 minutos de duração, acabando mesmo por repisar a conclusão anunciada no início de que a noite funciona como uma esponja de anestesia que tudo parece curar. Ou como a metáfora do frigorífico permanentemente avariado a oferecer uma explicação para um povo suspenso num limbo. 

Paulo Portugal

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