Quinta-feira, 28 Março

«20th Century Women» (Mulheres do Século XX) por André Gonçalves

It’s always about the mother

Mike Mills nasceu em 1966 em Berkeley, Califórnia. Cresceu com a Guerra do Vietname, o Presidente Nixon, drogas, computadores, aborrecimento. Os seus pais divorciaram-se quando ainda era um miúdo. Sente uma afeção por objetos inanimados e pelas memórias que estes guardam do tempo. Tornou-se um artista multifacetado, que gosta de misturar várias formas de arte numa só, sendo portanto o cinema o território perfeito para as suas criações. Filmou documentários, curtas-metragens e videoclips para artistas como os Air, Moby e Yoko Ono até se estrear nas longas-metragens com “Thumbsucker” aos 39 anos.

Onze anos depois, realizará a sua primeira obra-prima, e o melhor filme norte-americano do seu ano, uma obra que caminha sempre no lado certo da fina linha entre poesia e mantrasnew age“. Mike adora escrever sobre o passado: seis anos após ter feito “Beginners” sobre o seu pai, fala-nos agora sobre a sua mãe e a sua educação feita por três mulheres a um certo ponto da sua adolescência: 1979. Um ano em que o Presidente Jimmy Carter falava ao povo norte-americano (o seu discurso aqui presente numa cena, mas de facto omnipresente no idealismo que retrata em toda a película, de tal modo que o marketing escolheu precisamente o seu discurso como “narrador” do trailer), mas também o ano em que, do outro lado do Atlântico, vemos os primeiros sinais contrários a este discurso: nomeadamente a ascensão ao poder de Margaret Thatcher como Primeira-Ministra, antevendo Ronald Reagan e toda uma década particularmente difícil para quem estava do lado do humanismo de Carter…  

Estes pedaços de um único ano, narrados a várias vozes (de um conjunto de cinco atores escolhido a dedo), do passado para o futuro e ultimamente no futuro para o futuro mais além que é o nosso presente, arranjam-se como uma coleção audiovisual – um álbum de fotos, um diário, um vídeo, um conjunto de livros lidos na época, e de objetos variados – perdida num baú. É uma obra de uma nostalgia assumida, mas uma nostalgia plenamente ganha na sua desarrumação. Os “flashes” que temos sobre o que nos aconteceu na adolescência não são cenas completas e Mike sabe disso. Ele faz questão de refletir a transiência da vida e a fragmentação das nossas memórias em cenas que achávamos que iriam durar mais e cortam sem grande aviso. 

As pessoas que ele retrata no seu enorme filme são também pedaços de memórias, e portanto, talvez faça sentido que haja aquele truque tão humano de embelezá-las após o luto. Seria Dorothea (Annette Bening, no seu melhor nível), a sua mãe ficcionada, assim tão benevolente? Nunca saberemos, e nem o próprio argumentista e realizador o saberá completamente. A certo ponto, Julie (Elle Fanning), a segunda das “mulheres do século XX“, vira-se para o auto-retrato de Mike (Jamie) e diz-nos, em jeito de encerramento temático, que a impressão que ele tem dela é só dele, que ela é apenas real para ele. Mais cedo, Abbey (Greta Gerwig), a terceira das mulheres, pede a William (Billy Crudup) que represente uma personagem na história que quer inventar de como os dois acabaram por estar na mesma cama, com o homem a perguntar: “é mesmo necessário isto?” (uma cena que engenhosamente se cruza com outro “jogo de papéis” do casal de amigos Jamie e Julie). 

Para Mike, sentimos que as suas histórias auto-biográficas são de facto necessárias para o cinema; mesmo que sejam a sua visão deturpada dos factos (também assumida, por sinal, por cenas como as descritas acima), mesmo que o espectador não tenha crescido naquele mundo, nunca tenha andado de skate, nunca tenha escapado de casa para ir a um concerto, ou nunca tenha passado as manhãs a rever as ações da bolsa. A sua ode às figuras femininas que o criaram é de tal modo precisa nos detalhes (visuais e sonoros), e na maneira por vezes contraditória como os seres humanos pensam, que de algum modo as suas memórias “reais apenas para si“, refletem-se para o espectador como verdades pessoais. Aguentaria mais horas com estas memórias transientes, e talvez esta seja a única mágoa que resta quando os créditos finais começam a rolar

O melhor: Agarrar todas as potencialidades do cinema (e alguns dos melhores atores) para transformar pedaços de memória únicos num estilo audiovisual personalizado. 

O pior: chegar ao fim quando estávamos investidos em ver no mínimo uma mini-série com estas personagens. Mas é a vida. 

André Gonçalves

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