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O Divã de Estaline: por entre os sonhos húmidos do sovietismo

Num determinado momento de O Divã de Estaline, uma fotografia do verdadeiro líder soviético é gradualmente sobreposta por uma imagem da personagem homónima encarnada por Gérard Depardieu. Não existem muitas semelhanças entre os dois (o real e o da ficção), mas somente a vontade de recriar e trabalhar a História, tirá-lo do seu estatuto imaculável e intocável, e fazer o Cinema exercer-se como um poço de criatividade em vias de exploração.

O homónimo livro de Jean-Daniel Baltassat (uma perspectiva freudiana a uma das figuras incontornáveis da nossa História) é transportada para o grande ecrã pelas mãos de Fanny Ardant, a emblemática atriz que teima em deixar a sua marca como realizadora. A sua terceira longa-metragem vem inicialmente evitar os “becos sem saída” e o pedantismo “farsolas” de Cadências Obstinadas. Onde antes havia vazio emocional, agora há um outro sob o desejo de ser preenchido, como uma tela aguardando pelas suas cores. É nesse aspeto que o filme vem ganhando a sua devida forma. Assume-se então uma representação de um pedaço de História vencida, onde o teor psicológico aventura-se acima da veracidade dos factos.

Há um regresso à ritualidade de Cinzas e Sangue, aquele fascínio pela plasticidade do organismo fílmico e a aspiração pela arma mais potente do teatro: a sua recorrente imaginação, aquele “faz-de-conta” na recriação. Talvez seja por isso que Depardieu funciona simbioticamente como uma alternativa estalineana, mais do que as vestes camaleónicas que um qualquer biopic de Hollywood tentaria culminar.

Neste universo, o ator é o perfeito Estaline, numa versão que anseia respirar a breve emancipação. Um homem frio, calculista, inteiramente regido às ideologias criadas por ele próprio e estabelecidas no seu regime, um reinado com tamanho medo. O líder soviético espera aqui o seu momento de fragilidade, a desmistificação dos métodos de Sigmund Freud – a psicanálise – que o próprio considera charlatanices igualmente competentes que “roubam segredos a burgueses ricos” do outro lado da Europa. As sessões improvisadas, ensinadas no momento, servem de catarse para a desconstrução dessa mesma personalidade.

Em contracampo, surge Emmanuelle Seigner como Lídia, a referida improvisada “psicanalista”, a mulher “privilegiada” no seio afetuoso de Estaline, encarada como uma “ponte quebradiça” entre a emocionalidade resgatada do seu líder. As duas figuras constituem dois vértices de um triangulo formado por ódio / amor / medo, completado pelo pintor Danilov (Paul Hamy), um artista reprimido por uma expirada inspiração. Mas este triângulo é isósceles, dois lados servem como “sessões” de teor psicanalista a uma só figura, e a esta altura o leitor já se apercebeu qual sai beneficiada neste registo.

Mesmo que a psicologia não esteja no ponto(uma ciência não exata neste filme) é indiscutível o passo em frente que Fanny Ardant dá na sua carreira de direcção. O Divã de Estaline, é até à data, a sua obra mais completa, concisa e sobretudo, cinematográfica. Acreditando que o Cinema é uma arte de criação desprovida de rédeas, eis a minha saudação a Madame Ardant!