De projetos de sonho de Scorsese podemos esperar o melhor (irrepreensível A Última Tentação de Cristo) mas também o pior (Gangs de Nova Iorque). Daí que Silêncio tenha chegado coberto por uma aura de imprevisibilidade quanto ao seu resultado final, surgindo num período em que cada vez mais se fala na queda do cineasta americano. Os seus últimos trabalhos, quando não ausentes de voz própria (A Invenção de Hugo), pareciam fruto de um velho que tentava provar que ainda continha a energia de outrora (com O Lobo de Wall Street à cabeça), mas que acabava por fornecer um produto monótono e de pouca garra (algo que também podemos apontar a, por exemplo, Oliver Stone). Poderia Silêncio trazer uma nova luz sobre a névoa demoníaca de dúvida e apreensão que o rodeava? Continuemos…

Não é de agora o catolicismo do realizador. Esteve sempre presente desde o glorioso Os Cavaleiros do Asfalto, onde um jovem Harvey Keitel fazia das ruas de Nova Iorque a sua via-sacra. Mesmo os retratos que elaborou com Robert de Niro em Taxi Driver ou Touro Enraivecido tinham as suas idiossincrasias de vertentes bíblicas, procurando um caminho para a expiação de um anti-herói (no primeiro caso) e de um pecador violento (no segundo). Tal como o seu interesse por outras religiões, nomeadamente o budismo em Kundun. Mas o que aconteceria se se colocasse Andrew Garfield e Adam Driver na pele de dois padres jesuítas portugueses que, em missão no Japão do séc. XVII, procuram a figura do seu mentor, à medida que as respetivas fés seriam postas em causa pelos nativos, através de uma série de torturas e conflitos morais?

O resultado tem o seu quê de desapontante. Após um primeiro ato longo e excruciante (quase propagandista), o filme ganha uma lufada de ar fresco quando a beatitude dos seus protagonistas passa a ser acusada de orgulho e impudência (e que conduzem a um final apoteótico). Simultaneamente, as imagens e os rituais cristãos são confrontados face ao valor que cada vida humana acarreta e se o martírio dos seus crentes é mesmo o preço a pagar pela fé. É talvez essa a hipotética discussão que tenha apelado tanto a Scorsese no livro em que se baseia: justificar-se-á cada crucifixo e oração? Ou é possível na iconoclastia e no silêncio de tudo encontrar-se e exprimir-se a genuína fé? (é esse o significado do título e não o cliché que muita da crítica tem apontado “o silêncio de Deus”)

No entanto, de boas intenções está o Inferno cheio, e por maior que seja a discussão teológica despertada, esta não salva o filme de um excesso de montagem e uma falta de encenação (custa acreditar que Scorsese tenha ganho, em tempos, o epíteto de “rei do tracking shot” quando aqui boa parte das cenas estão resolvidas em campo/contracampo, em momentos onde bastaria um plano médio). Ainda mais problemáticos são as interpretações dos atores e o argumento. Fala-se japonês e latim, mas o único português que ouvimos são uns “Déous!” e “Páraizou!” sofríveis. Garfield não tem estofo para o papel requerido, Driver desaparece abruptamente a meio e a personagem do guia japonês não faz mais que trair os seus princípios e pedir a absolvição, sucessivas vezes. E é um projeto que foi pensado durante quase 30 anos. Esperava-se mais cuidado, maior virtuosismo técnico, algo mais visionário e feito com amor, ao invés de devoção.

Queremos acreditar que tudo isto é passageiro e que aquele movie brat que nos deu, em tempos, Travis Bickle, Rupert Pupkin ou Alice Hyatt ainda existe e está apenas adormecido. Mas, ao fim de tantos anos de procura e pouco sucesso, continuamos a questionar-nos: Scorsese ainda morará aqui?

O melhor: O final apoteótico e partes das discussões teológicas.

O pior: Excesso de montagem, o primeiro ato, defeitos nos desempenhos dos atores e, mais importante, a espera de 3 décadas não se sentir que tenha valido a pena.

Pontuação Geral
Duarte Mata
silence-silencio-por-duarte-mataGarfield não tem estofo para o papel requerido, Driver desaparece abruptamente a meio e a personagem do guia japonês não faz mais que trair os seus princípios e pedir a absolvição, sucessivas vezes