Quinta-feira, 18 Abril

«One More Time With Feeling» por Duarte Mata

Em julho do ano passado, a tragédia abalou a família de Nick Cave quando, durante as gravações do seu recente álbum, Skeleton Tree, faleceu Arthur, o filho de 15 anos. O cantor, por querer evitar toda a pressão mediática que surgiria aquando a estreia do álbum contatou então Andrew Dominik (O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford e Mata-os Suavemente) para que um filme fosse o único registo da experiência traumática que estava a passar. O acordo pré-estabelecido entre os dois seria simples: Dominik poderia filmar e perguntar o que quisesse e, caso Cave não se sentisse confortável com alguma coisa que visse no produto final, esta seria eliminada. O resultado: um impressionante e incrivelmente maturo documento sobre a perda. Eis One More Time With Feeling.

Dominik abandona os seus exercícios pós-Tarantinescos com os quais havia ficado célebre e cria o seu trabalho mais singular. Filmado num preto-e-branco lúgubre, em forma de luto permanente e que só numa cena é interrompido (já lá vamos…), o cineasta neozelandês opta por entrevistar apenas três elementos: Cave, a esposa estilista Susie Bick e o amigo e também membro da banda The Bad Seeds, Warren Ellis.  A segunda fala do seu trabalho e o terceiro da amizade que tem com o par. Mas é Nick Cave, com o seu porte vampírico e rosto cansado quem mais indigna. Se dentro do estúdio aparenta ser um artista confiante e firme das suas capacidades, nas entrevistas fora dele mostra-se como alguém inseguro, incapaz de articular frases coesas que, quando finalmente saem, provocam-lhe qualquer tipo de desgaste. No princípio ao ser questionado sobre o seu trabalho (“Porque é que abandonou uma estrutura narrativa nas suas canções?”), não consegue replicar sem gaguejar ou tapar os olhos em exaustão. Nem poderia ser de outra forma. Falar do que faz já não lhe interessa e esse tópico ficará encerrado quando dirá, mais tarde, “I don’t give a fuck about the songs”. É a dor, e de como está emocionalmente devastado por dentro, que quer que seja captada. E consegue.

Nunca ninguém verte uma lágrima e quando as personagens falam do “trauma” (é sempre assim que é designada a morte do filho), os sentimentos tentam ser ao máximo contidos (“Don’t cry now”, murmurará, a dada altura, Susie Bick). Não é exploitation do sofrimento de um casal, mas um testemunho frontal sobre a irreversibilidade do mesmo (pois, afinal, é ele que permite o filme progredir, dando-lhe a estrutura e coesão necessárias) e respetiva impossibilidade de superação. E, no entanto, nem por isso deixa de sentir-se como um tiro direto ao coração. Como quando Cave afirma “Ao contrário do que dizem outros que passaram por uma experiência semelhante, o meu filho não vive no meu coração. Está no meu coração, mas não vive”. É este derrotismo que assombra o filme inteiro, essencialmente verbalizado por uma narração off bastante poética e repleta de metáforas, escrita pelo próprio cantor, ou pelas cenas de performance de cada faixa do já referido álbum.

E é nestas que, de facto, Dominik mostra a sua mestria, já que nenhuma delas é filmada da mesma forma, sempre com um elaborado jogo de luz e sem pudor em mostrar o artifício com que estão a ser registadas. Mais do que isso, é admirável como com elas consegue estabelecer a psicologia do seu retratado, como na cena que cria através de um plano com Nick a cantar “Jesus Alone”, na metade direita do enquadramento e, em contracampo, o cantor junto à misturadora de som a olhar em frente, como se este estivesse a assistir e a avaliar frustradamente a sua própria prestação, debilitada e imperfeita. Ou ainda, aquele que é o pico emocional do álbum, a depressivamente bela “Distant Sky” em que, graças a ela, é criado o morceau de bravoure do filme inteiro: a única sequência a cores que referimos, feita num elaborado falso plano-sequência. Este parte do estúdio com Cave ao piano que, através de uma panorâmica, é abandonado para aparecer a soprano Else Torp. Depois, a câmara passa por cima desta e atravessa o estúdio inteiro, por portas e buracos até chegar ao exterior onde, num movimento de grua impossível, ascende, filmando, gradualmente, o estúdio, a cidade, o continente e o mundo. Nunca o ponto de vista de algo como um espírito, Deus ou os anjos tinha feito tanto sentido em ser mostrado desta maneira.

Não é preciso mais para perceber que, se Cave quis fazer este filme, não o fez para enfrentar os seus demónios. Antes para anunciar que já não faz parte do mundo dos vivos. E que as suas canções daqui para a frente serão gritos espetrais da árvore-esqueleto onde habita. Este é o seu requiem. Por isso, One More Time With Feeling não é só o melhor documentário feito sobre um cantor desde o encontro entre Pedro Costa e Jeanne Balibar em Ne Change Rien. É também a obra-prima de Andrew Dominik e o único filme que, verdadeiramente, faz justiça em encerrar o fracassado ano, cheio de amarguras e desilusões, que foi 2016.

O melhor: O derrotismo e a frontalidade, sem sentimentalismos excessivos que a obra contém.

O pior: Nada a apontar. 

 
Duarte Mata

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