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«Raw» (Grave) por Paulo Portugal

Foi um dos grandes momentos do BFI London Film Festival e acabou por vencer na categoria de Melhor Primeiro Filme. Na verdade, o provocador, sangrento e apetitoso “Raw” promete ser um dos fenómenos de cultos do ano. Um filme que quase passava despercebido na voragem de Cannes, a não ser pelo júri FIPRESCI que lhe atribuiu o prémio na Quinzena dos Realizadores. Só que em Toronto ganhou as manchetes a propósito dos desmaios e a intervenção de paramédicos para cuidar de espectadores que se passaram com algumas das bem explícitas cenas de canibalismo.

Contudo, este lado aparentemente gratuito não esconde o enorme mérito da estreante cineasta de origem franco-belga que explora o puro horror com uma profunda atitude de desejo feminino, num sinuoso percurso em que se reavalia a educação paternal e explora uma singular ligação fraternal. Se bem que o fascinante exercício de cinema desta viagem que testará alguns limites de resistência será, porventura, o mais surpreendente. Sim, é uma das grandes (e saborosas) surpresas do ano. Mesmo que possa fazer aderir alguns espectadores carnívoros a uma dieta vegetariana.

Ora é precisamente o contrário que sucede com a jovem vegetariana de 16 anos Justine (uma relevação chamada Garance Marillier, também aqui na sua primeira longa). Ela que nunca tinha sentido o paladar da proteína vermelha animal e que terá um choque ao ser forçada a ingerir um fígado cru de coelho numa das violentas sessões de praxe anárquica da faculdade de veterinária onde ingressa. Essa provação já fora ultrapassada pela sua irmã Alexia (Ella Rumpf), veterana na mesma instituição, em que os caloiros são recebidos com uma rave forçada logo seguida por um banho de sangue que nos faz recordar a sorte de Sissy Spacek, em “Carrie” e os professores mais parecem saídos de “Another Brick in the Wall”, dos Pink Floyd.

É neste ambiente frenético que Justine acaba por se afirmar, mesmo tendo apenas como referência a irmã e Adrien, o seu companheiro de quarto gay (Rabah Nait Oufella). A partir daqui liberta Ducournau uma história feroz, muito crua e original, absorvendo o género do horror, mas sem nunca se submeter às suas regras. Sobretudo quando centra a narrativa na relação entre as duas irmãs e de um ponto de vista muito feminino, em que uma das cenas mais arrepiantes sucede quando Alexis força a irmã a uma arrepiante cena de depilação das virilhas que se arrisca a ficar nos anais do cinema de horror. Mas há mais.

Não deixa de surpreender que Ducournau se mostre tão à vontade em explorar este lado mais atrevido da feminilidade, bem como a mostrar-se irrepreensível no realismo das cenas de canibalismo gore entre as duas irmãs, com efeitos especiais que poderá fazer vacilar os ímpetos de testerona mais viris. E mais não dizemos. Com a particularidade, e aí todo o mérito de um guião bem urdido, da cineasta nunca embarcar no tentador, mas também redutor, festim gore. Sim, Ducournau é um nome para seguir.

O melhor: A frescura dos elementos e da narrativa que a realizadora introduz no género de terror

O pior: A ideia de ser um filme mais conhecido pelas pessoas que desmaiaram a vê-lo

Paulo Portugal