Quinta-feira, 28 Março

«Evolution» (Evolução) por Hugo Gomes

Até podia ser a adaptação de um conto qualquer de H.P. Lovecraft. Podia, mas não o é. E permitam-me que o diga, esta não-adaptação é mais lovecrafteana que as próprios conversões do legado do escritor norte-americano, ponto. A francesa Lucile Hadzihalilovic, colaboradora de Gaspar Noé, regressa ao seu cinema de sugestão, o terror é mero elemento do desconhecido, esse, abraçado pelas profundezas oceânicas e deslumbrado por um simbolismo utópicos, indo diretamente dos mitos gregos das Amazonas até às lendas “atlântidas“.

Nesta fábula negra, somos levados a uma ilha remota habitada somente por mulheres e as suas respetivas crianças, todos eles rapazes. No seio dessa comunidade encontramos Nicolas (o estreante e revelação Max Brebant), que tal como todos os habitantes desta ilha, possui uma forte ligação ao mar. Um dia descobre um corpo de um menino nas profundezas e é a partir desse incidente, que Nicolas apercebe-se que algo estranho e inumano acontece diariamente no seu lar, longe dos seus olhos, mas muito perto do seu corpo.

Hadzihalilovic transforma o silêncio em algo ensurdecedor, incomodo como um “tentáculo” que nos leva para um mundo de possibilidades, porém, mortiferamente convidativo. Evolução funciona num retrato das fragilidades humanas, aqui consentidas nos seus próprios sentimentos, que na ausência destes somos sujeitos a metamorfoses animalescas (literalmente representado), vitimas de algo mais antigo que o tempo, mas fora do primitivismo arcaico.

Este “body horror” intimista, povoado por criaturas inexpressivas, é o lugar onde a humanidade torna-se no derradeiro macguffin. Parece cliché insinuar que são as emoções que nos distinguem do resto destas monstruosidades “lovecraftianas“, o descrito nosso auge da cadeia evolutiva. Contudo, é na abordagem que Evolução consiste no portento da “história da carochinha“, o qual os sentimentos, matéria esotérica aqui exposta, servem como vinganças pessoais na confrontação de um negro desconhecido, e simultaneamente, é com eles, como é demonstrado metaforicamente na imagem da estrela-do-mar, a nossa regeneração. 

Por vezes sonhamos em ser melhores, influenciarmos por um sonho de Ícarus, as pretensões de ser uma espécie de superioridade acima de qualquer fator natural. Todavia, esquecemo-nos que essa nossa fraqueza sentida, converte-se na ancora que nos impede de atingir tamanho degrau. Trata-se daquilo (novamente pisando na mesma lengalenga),  que nos diferencia do resto das “bestas“.

Lucile Hadzihalilovic fez um filme sobre a Humanidade, sobre o estado dela e o caminho a percorrer, tudo instalado em território fantástico, dilacerando na incógnita desses mares desconhecidos. Evolução é isso, um conto que nos causa arrepios pela sua frieza narrativa, envolvida numa composição sonora e um visual deslumbrante. Este é dos filmes mais intrigantes do ano, nisso tenho a certeza, como também o mais prodigioso da mente de Lovecraft, sem assumir-se como peça adaptada. 

Hugo Gomes

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