Quinta-feira, 28 Março

«Rara» por André Gonçalves

É bom abrir a competição de Longas-Metragens assim de uma forma tão confiante e consciente das ambiguidades que a sua história encerra. Uma história ainda assim raras vezes vista – e que pode agora envergonhar, nos seus propósitos mais recatados, um cada vez mais datado “Os Miúdos Estão Bem” (2010) de Lisa Chodelenko (talvez o filme que pior envelheceu na última década em termos temáticos?).  

Rara” é então a família aqui retratada, uma família chilena com duas mães, sendo uma delas a mãe biológica e a outra a madrasta (mais madrinha que madrasta), duas filhas e um gatinho que acaba por ser testemunha, tal como o espectador, de um núcleo que não é o idílico, mas é igualmente o mesmo dos restantes humanos. Não há aqui “bons” e “maus” da fita – a certo ponto a figura paternal será vista como “mau da fita” mais para as mães do que para o espectador, porque a realizadora e co-argumentista Pepa San Martin recusa precisamente esse facilitismo. Há uma família, falível, amorosa, disposta a tudo para se manter junta. Claro que aqui entra uma agenda política, pois sabemos que o próprio filme foi inspirado num caso verídico que ocorreu no Chile, no qual uma mãe lésbica viria a perder a custódia dos filhos a favor do pai biológico. 

A colocar o foco da câmara nos passos de Sara, a filha mais velha da família, esta comédia dramática aproveita também para repisar alguns caminhos do género “coming of age” (i.e. passagem para a idade adolescente, e consciência da sexualidade, etc.), mas mesmo estes momentos familiares vêm acompanhados de uma sensação de querer mostrar, de uma forma particular, que é tudo igual. 

É com Sara que temos afinal conflito – é graças à sua crescente e naturalíssima rebelião contra as figuras que a suportam (só quem nunca foi adolescente não percebe o qual natural é este passo), que a luta pela custódia se reacende, levando assim o filme a uma inevitável conclusão, mas uma conclusão silenciada, que cumpre em trazer o desconforto e a tristeza internalizada dos intervenientes para fora do ecrã. 

Custa crer que esta é a primeira longa-metragem de San Martin por esta contenção que já evidencia aqui, e pela direção de atores fenomenal (mas aí percebe-se dado o seu historial enquanto atriz e encenadora), mas a partir de hoje, estamos de olho nela. Obrigado.  

O melhor: A subtileza do retrato e o leque de interpretações praticamente imaculadas.   

O pior: A certo ponto pode custar estar no meio desta luta.  

André Gonçalves

 

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