Sexta-feira, 29 Março

«Dersu Uzala» por Paulo Portugal

Depois de Barry Lyndon, de Kubrick, Dersu Uzala, de Kurosawa, curiosamente, ambos de 1975, em mais uma outra magnífica reposição estival a fazer lembrar os tempos em que as reprises ocupavam o espaço que hoje parece pertencer unicamente a blockbusters ou produtos de fundo de catálogo. Por isso mesmo, faria todo o sentido que as aventuras naturalistas de Dersu partilhassem o bolo das bilheteiras com a gangue de vilões de Suicide Squad.

Dersu Uzala surgiu numa época complicada para o autor de Os Sete Samurais e Trono de Sangue. Não só por motivos de saúde agravados e depressão agravadas também pelo desaire do arrojado “Dodeskaden, chumbado no box-office e pelas opiniões da imprensa. Tal solução acabaria por o levar a criar um dos seus mais belos e inesperados filmes. De resto, esta encomenda da Mosfilm convidou-o a evocar os primeiros anos do século XX, na Rússia imperial, na adaptação sobre o livro de Vladimir Arseniev, sobre o guia Derzu Uzala, o que até parece comungar com a politica nacionalista russa. Mas, a verdade é que o filme deu uma alma nova a Akira Kurosawa, pois ele próprio já havia tentado avançar para esse projeto nos anos 30. Dersu Uzala acabaria mesmo por vencer o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1976, apesar da reação fria no Japão. E também por relançar a sua carreira.

A narrativa é do próprio Arseniev (Yuri Solomin) que relata a expedição topográfica que comandou entre a Sibéria e zona contígua com a China. Contudo, esse rumo haveria de ser alterado depois deste se cruzar com o veterano caçador itinerante asiático Dersu Uzala (um excelente Maksim Munzuk, de quem se diz, talvez com alguma razão, ter inspirado a figura do Yoda de Star Wars), ele que era descendente da tribo Goldi e que haveria de guiar o grupo ao longo de dois períodos, um durante o inverno e uma segunda vez durante o verão.

Ainda assim, a rodagem acabaria por se arrastar ao longo de quatro anos, em grande parte, dificultada pela opção do realizador japonês em filmar em cenários naturais. Filmado com o esplendor dos 70mm, Dersu Uzala pode muito bem integrar-se naquele lote de filmes que evocaram os pioneiros no Velho Oeste, como o Céu Aberto de Howard Hawks, as Danças com Lobos, de Kevin Costner, ou até mesmo, porque não, o Avatar de James Cameron, afinal de contas, apenas uma variante FC do género.

De início encarado como uma anedota, devido à sua estatura atarracada, linguagem limitada e idade avançada, Dersu gradualmente contagia o grupo com a sua filosofia de vida de caçar apenas para comer e de venerar os elementos naturais. Durante a primeira parte, talvez mais bela e intensa que a segunda, Kurosawa embrenha-nos no inverno gelado onde Arseniev e Dersu se perdem durante uma tempestade e sobrevivem apenas graças à atitude prática do guia e ao seu conhecimento da natureza. Já na segunda parte, cinco anos mais tarde, durante uma expedição numa outra região, o capitão acabará por se cruzar de novo com Uzala que os acompanhará durante esse verão, onde viverão novas aventuras e novos encontros. Em todo o caso, percebe-se que as coisas já não eram como dantes. Sobretudo a partir do momento em que Dersu começa a perder a visão. Temos ainda um que passa na cidade com a família de Arseniev, onde se percebe que um destes homens pertencerá sempre à natureza, ao passo que o outro não deixará de ser um homem de família urbana.

Na revisão de Dersu Uzala, visto inicialmente já duas décadas depois da sua estreia mundial, não sofremos com o efeito do tempo e comovemo-nos da mesma forma com aquele plano soberbo e simultâneo dos “homem” sol e “homem” lua. Mágico.

O melhor: O tom naturalista que atravessa o filme
O pior: Algumas sequências


Paulo Portugal

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