Sexta-feira, 19 Abril

«Axilas» por Paulo Portugal

Eu ainda não sabia o seu nome, que vim a saber ser Maria Pia. Assim começa Axilas, o derradeiro filme de José Fonseca e Costa, com estreia marcada para esta semana, seis meses após a sua morte, aos 82 anos, numa altura em que decorria ainda a rodagem da adaptação do truculento conto Axilas e Outras Histórias Indecorosas, do autor brasileiro Rubem Fonseca.

Um trabalho que Paulo Mil Homens haveria de assegurar, concluindo a rodagem e efetivando a montagem. No entanto, o trabalho de campo estava já feito, pelo guião em parceria de Fonseca e Costa com Mário Botequilha), optando claramente por um português carregado que celebra uma certa realidade lisboeta, uma espécie de misto entre a saudade bairrista dos marialvas e das tascas, mas sem problemas em enfrentar os tabus da Santa Madre Igreja Católica, bem como um bem atual escárnio aos ‘donos disto tudo’.

Como se percebe, este filme produzido por Paulo Branco, segue um registo tragicómico, narrando a história de Lázaro de Jesus (Pedro Lacerda é uma escolha perfeita para o papel), ao perceber, logo após o funeral da avó (Elisa Lisboa num assertivo e adequado registo), que afinal de contas não era neto, mas sim adoptado, e que não receberia qualquer parte da choruda herança da fortuna. Puta da velha, dirá ao saber da sorte que lhe cabia. É que a avó selecionara-o, como a um rafeiro num canil, ao vê-lo no orfanato com um chapéu de orelhas de burro. E em vez do seu nome, Bruno Miguel, baptizara-o na hora com um mais adequado Lázaro de Jesus, sentenciando, É um cepo onde irei esculpir um mártir.

Não admira, portanto, que Lázaro se deixasse seduzir mais pelas conversas de tasca, à volta do tintol, a tal camaradagem, em vez da aragem da cama, celebrando os feitos do Benfica (do qual o realizador era acérrimo adepto), do que pelas confissões diárias, onde se via obrigado a pagar 20 “euritos” ao cura (Fernando Ferrão), em troca de algumas avé-marias. Contudo, a sua vida mudaria ao descobrir os prazeres carnais escondidos no escritório do ‘avô’. Em particular um poema que enaltecia os mistérios recônditos da axila de uma mulher e outros orifícios.

Fulminado por tal imagem, que rivalizava em muito com a vagina exposta do quadro realista de Courbet, A Origem do Mundo, Lázaro haverá de encontrar essa proximidade numa violinista da Gulbenkian (Maria da Rocha, num papel que é o seu) que passa a perseguir como uma lapa. É a partir daí que se desenhará o lado mais trágico deste filme, e que acaba até por gerar um final que se desejava mais conseguido. Seria pela necessidade de germinar o filme?

Percebe-se esta necessidade de provocação romântica do autor de Kilas, o Mau da Fita, exemplificado na deliciosa aula de catequese para casais, em que a catequista delicodoce (Margarida Marinho) informa os noivos como avaliar o muco cervical da secreção vaginal; mas também na farpa política e social, quando, mais tarde, nos acerca dos amigos banqueiro do ‘padrinho’ (André Gomes), em que Rui Morrison, no papel de um orgulhoso gestor de um das principais bancos nacionais (numa clara alusão ao BES), assinala aos amigalhaços na sua propriedade o local da “cabana das fodas por fora”.

Afinal de contas, este é um filme assumidamente corrosivo do realizador que fora perseguido pela polícia política, mas que acabou por ser assistente de Antonioni, no seu exílio forçado. Saúda-se aqui de uma forma particular a sua enorme paixão pela capital, pelas suas gentes, pelo bairrismo, pelas ruas. Axilas é, assim, um filme maior, sobretudo ao celebrar o inconformismo e o cultivo de uma certa malandragem permanente.

O Melhor: O colorido das personagens de profundo cunho realista que nos fazem recuperar uma certa mística da essência lisboeta.

O Pior: O final ficou desequilibrado e parece-nos ter disso resolvido de uma forma algo precipitada.

Paulo Portugal

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