Sexta-feira, 19 Abril

«Le Tout Nouveau Testament» (Deus Existe e Vive em Bruxelas) por André Gonçalves

 

São das primeiras palavras que ouvimos dizer nesta nova longa-metragem do belga Jaco Van Dormael, ditas precisamente por Ea, a filha mais nova deste Deus, de feições humanas, antipático, sem aparente redenção. E se basta esta frase, reaproveitada para título nacional do filme, para arrancar a primeira grande gargalhada ao espectador, e resumir bem o mote desta comédia surrealista, o sumo deste “sketch” que serve de base é suficiente para aguentar duas horas de película.

Já o título original (“O Novíssimo Testamento”) foca-nos mesmo no que vem depois: disposta a redimir o mau génio do Pai, Ea envia um SMS para todos os humanos com a hora da sua morte, cronometrada ao segundo, o que causa com que estes comecem a fazer o que sempre quiseram e foram adiando… E desce à “Terra”, dando todo um novo propósito a um objeto doméstico comum. Sabendo que não pode fugir à fúria divina do seu progenitor, enceta também uma jornada de emancipação, e decide criar, à imagem do seu irmão JC, um novo testamento, reunindo para esse efeito meia-dúzia de apóstolos escolhidos ao acaso dos arquivos do pai. Formarão assim 18 apóstolos no total, o número preferido da Deusa-Mãe.

Face a eventos recentes, nos quais Bruxelas ocupa uma posição de poderio suprema sobre os estados-membros que compõem a União Europeia, existe desde logo aqui uma identificação particular de todos os “europeus” perante uma Europa envelhecida e autoritária, deixando as figuras do seu lar submissas às suas regras. É aqui, no seu humor subversivo quase sempre certeiro que o filme efetivamente nos conquista, minuto a minuto; e até nos faz perdoar alguma esquematização das suas personagens, de qualquer das maneiras herdeira de filmes como o igualmente francófono “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (com o qual partilha curiosamente uma atriz: Yolande Moreau)… Se em termos visuais, Jeunet ganha a Dormael, este ainda dá luta, e oferece-nos em particular uma imagem tão bem conseguida de Deneuve com um primata que será facilmente uma das imagens mais emblemáticas do “novíssimo século XXI“.

Em suma, um filme que se leva suficientemente a sério para cumprir os seus objetivos cómicos; no limiar do “nonsense” mas sempre com os pés assentes na terra, e sempre inteligente nesta extensão de uma grande ideia (metafórica) numa longa-metragem. E valha-nos o poder mágico das máquinas de lavar roupa!

O melhor: o humor subversivo q.b.
O pior: algum facilitismo na esquematização das personagens.


André Gonçalves

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