Quarta-feira, 24 Abril

«Amnésia» por Paulo Portugal

Barbet Schroeder, o suíço nascido em Teerão, tem uma relação umbilical com a ilha balear de Ibiza. Foi para lá que a sua mãe fez um voto de retiro quando desejou apagar da sua vida todos os traços traumatizantes do regime alemão revelado no pós 2ª Guerra Mundial. De tal forma que o jovem Barbet não chegou a aprender a língua de Goethe e Karl Marx. Mas usou esse cenário idílico para esboçar uma outra deriva, a da comunidade hippie à procura de uma nova evasão sensorial e psicadélica. Estávamos no final da experimental década de 60, Barbet estreava-se na realização com More, um filme ambientado na casa da mãe com um casal que se entrega às sensações das drogas pesadas e da música dos Pink Floyd.

Este ano, numa exibição especial em Cannes, Barbet apresentou esse filme de parceria com Amnésia, onde um outro casal de gerações bem diversas vive uma relação de comunhão singular na mesmo cenário, na mesma casa junto aos rochedos de Ibiza e que toca um tema tabu para a Europa. Depois da sua exibição no LEFFEST, chega agora a oportunidade de os ver e absorver. Apesar do legado de More, desde logo pela banda sonora dos Pink Floyd, que motivaria o álbum homónimo (também, conhecido por Obscured by the Clouds), a maturidade de Amnésia toca-nos de maneira bem mais forte.

Amnésia é também a história de Martha (Marthe Keller), uma mulher de 70 anos e jovem alemão Jo (Max Riemelt), um jovem aspirante a DJ, que ficarão irremediavelmente afetados pela ilha. Apesar da forma singela, Schroeder como que nos faz acordar de um suave sonho que quase apagou essa amnésia voluntária. É que a personagem de Martha como que encarna o trauma da mãe de Barbet, recusando a línguas e tudo o que era germânico – o que implicava até entrar num inofensivo ‘carocha’ ou beber vinho do Reno. Será num almoço singelo, com a mãe e o avô de Jo, (Corinna Kirchhoff e Bruno Ganz), que involuntariamente Martha abre a caixa de Pandora do passado e deixa cair a sua origem germânica, acabando por colocar a nu as razões que levaram esta radical opção de vida.

Curioso é observar como 70 anos depois, o tema ainda é tabu, neste caso concretizado com as enormes dificuldades do filme de Schroeder encontrar distribuição e de ter sido até recusado no festival de Berlim – daí a sua exibição em Cannes.

É pena, pois trata-se de um filme belíssimo, encantado e sereno. E nem precisa sequer de invocar os ritmos contagiantes do house local. Em vez disso, o Barbet oferece-nos a calma, os ritmos da natureza a uma cena memorável de sombras chinesas. Grande cinema.

O melhor: O tempo e a imutabilidade da ilha que sentimos passar entre More e Amnésia, mas também a desnecessidade de um romance.

O pior: Os falsos pudores que fizeram muitos distribuidores olhar de lado


Paulo Portugal

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