Quinta-feira, 28 Março

«Matériaux de Hongrie» por João Miranda

Há um conceito de que a tecnologia tem, pouco a pouco, eliminado o espaço privado. Tudo o que antes era privado é agora uma apresentação de nós próprios, exigida e policiada pelos outros, quer pela imagem (instagram, snapchat, etc) como pelo verbal (facebook, twitter, etc). Proponho que o que desapareceu das nossas vidas não foi o privado, mas o público. Vê-se pela maneira como as pessoas agora se comportam em espaços partilhados. Por exemplo, má-educação não é discutir em voz alta ao telefone no autocarro para toda a gente ouvir, má-educação é ouvi-lo e comentar ou pedir que não o faça. Com o ultraindividualismo o que antes era um espaço público e partilhado tornou-se agora num espaço dividido de privacidades disputadas, em que a intimidade e as vontades dos outros se degladiam constantemente com as nossas e em que “temos direito” a impôr a nossa vontade/preferência/intimidade a todos os outros. Isto vê-se também no cinema, onde explorações individuais, amadoras e/ou académicas, são consideradas obras de pleno direito por estes “flocos de neves únicos” (como lhes é dito desde pequenos).

Matériaux de Hongrie é um destes filmes: um filme-umbigo. Se já antes havia “shoegazing“, há agora “navelgazing“, longas explorações (este filme tem quase duas horas e meia) de nada a não ser a própria vontade de quem o faz. O perpetrador é aqui Noëlle Pujol, que, partindo de um conceito inicial (uma frase de Jean-Claude Biette onde imaginava um filme com planos de arquivo colados sem coerência) que abandona rapidamente, impõe a sua câmera onde quer que vá. A palavra aqui é mesmo impôr: o constrangimento e incómodo que esta causa são óbvios, mas isso não a impede não só de continuar a filmar, como de usar as imagens para esta túmida projeção do seu umbigo. Mais do que documentar o mundo à sua volta, Pujol projeta nele o seu umbigo e apresenta os resultados orgulhosa. Lembra as crianças que fazem desenhos nas paredes com a sua caca.

Estas projeções umbilicais enchem agora os festivais de cinema, uma perversão do individualismo de uma geração que cresceu a ouvir que são únicos e maravilhosos e que tudo o que fazem é magnífico. Não está já na altura de lhes explicar que o que fazem cheira mal?

O Melhor: Sair da sala.
O Pior: Estar dentro da sala.


João Miranda

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