Sexta-feira, 19 Abril

«Je me suis mis en marche» por João Miranda

Se escrever poesia é difícil (ao contrário do que muitos adolescentes pensam), filmá-la é ainda mais complicado. O uso de imagens na língua escrita não se traduz literalmente para imagens no ecrã e todos os jogos verbais (sonoros, semânticos, etc.) são perdidos. Ainda assim, muitos foram os que já tentaram traduzir poesia para cinema com graus variados de sucesso. Je me suis mis en marche é um desses filmes ambiciosos que o tenta fazer, desta vez baseado em “La Descente de l’Escaut” de Franck Venaille. Francês de nascimento e belga de coração, Venaille descreve nesse poema épico um percurso nas margens do Escalda, um dos principais rios da Bélgica, ao mesmo tempo que se procura definir e enfrentar a sua ansiedade.

Mais do que uma recriação do poema, esta é uma re-criação, no sentido de uma nova criação, não uma reprodução do anterior. Usando leituras do próprio poeta e do ator Laurent Ziserman, Martin Verdet, o realizador, vai construindo num pequeno quarto onde tudo se passa, o percurso. Este é uma espécie de inversão do “road movie“, onde o percurso e o mundo se rebatem todos dentro deste pequeno espaço. Ao texto são adicionados sons “foley“, música e, claro, imagens. O que a princípio parece que será só uma leitura de textos vai assumindo proporções delirantes, com o próprio rio a fluir dentro do quarto, nas palavras, em água, e nas imagens, não animadas, mas reais, a surpreenderem quem o vê.

Se filmar poesia é complicado, Martin Verdet consegue fazê-lo não tentando imitar o texto ou mantendo-se servilmente agarrado a ele, mas num novo acto de criação que, mais do que um documentário, é poesia, e, mais do que ambicioso, é generoso. Se há algo a apontar neste filme é a necessidade de, tal como a poesia, o ver/ler várias vezes para conseguir apanhar as várias leituras, variantes, matizes que vai assumindo na sua corrente, mas que prazer poder andar nestas margens!


João Miranda

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