A memória funciona de maneira curiosa. Ao contrário do que pensamos, cada vez que nos recordamos de algo, mais do que nos lembrarmos da memória em si, estamos a recontá-la, a alterá-la um pouco. A memória, como a História, é algo que se vai alterando com o tempo: aparecem lacunas, modificam-se detalhes, adicionam-se outros, vai-se recontando tudo numa narrativa que encaixa no que somos agora. Mesmo com recurso a documentos físicos, esta narrativa semi-ficcionalizada acaba por ser tão duvidosa que é espantoso que ainda persista a comparação da memória humana com a de um computador.
Em Forbidden Quest, Peter Delpeut leva, com base em imagens de arquivo, essa característica da memória ao seu extremo, inventando uma narrativa fantasiosa que se baseia no que vemos. Assim, o que antes foram documentários esquecidos sobre explorações no Pólos do mundo, são agora uma história com contornos de Edgar Allen Poe e Júlio Verne. A degradação da película dá lugar ao sobrenatural e a sobreposição da narrativa, para a qual foram filmados as únicas sequências originais, adicionam um tom de perigo e inquietação que se sente por todo o filme.
A comparação inevitável parece ser com Guy Maddin e as suas colagens onírico-poéticas, uma recriação constante de uma memória inconstante. As frases sobrepõem-se às imagens e vão subvertendo os seus significados originais, criando paisagens e histórias cuja realidade sabemos não poder ser verdadeira, mas nas quais acreditamos. Forbidden Quest coloca-se, assim, no sentido oposto a Goddard, quando este afirma que o cinema é “a verdade 24 vezes por segundo”. Sem cair em relativismos, Forbidden Quest mostra que A Verdade é uma construção e que o cinema nunca poderá apresentá-la, mas apenas uma versão (incompleta e interpretada) desta e que, nesse processo, por vezes a perde completamente de vista (nem sempre de forma inocente).
O Melhor: A Fantasia; o uso de imagens de arquivo.
O Pior: Acaba por não resolver a história, ficando incompleta.
João Miranda
