Quinta-feira, 28 Março

«Crimson Peak» (A Colina Vermelha) por Roni Nunes

 

Já tem 250 anos o arquétipo das histórias góticas, desenvolvido primeiramente por Horace Walpole em O Castelo de Otranto (em plena voga do Iluminismo racionalista!): uma corajosa e virtuosa heroína em apuros foge de um aristocrata moralmente decadente pelas catacumbas de um sinistro castelo. Pelo caminho cruza com toda a sorte de abominações sobrenaturais, como portas que abrem e fecham sozinhas, ruídos estranhos, barulhentas tempestades lá fora e tenebrosas fantasmas, até ser salva por um cavaleiro sensaborão (não, não se está a contar o que acontece nesta história).

O livro foi um sucesso (de público, bem posto) e o modelo nunca deixou de fascinar os escritores que vieram a seguir e – mais de um século depois – os cineastas. A história de Guillermo del Toro e Matthew Robbins começa por lembrar que foram as mulheres a explorar as pegadas de Walpole, desenvolvendo as suas possibilidades numa pujante tradição literária lideradas por Ann Radcliffe no final do século XVIII.

É deste cenário que emerge Edith Cushing (Mia Wasikowska, ostentando um nome que tanto dá para homenagear Edith Wharton quanto o grande caçador de vampiros Peter Cushing). Ela é uma escritora de história de fantasmas assombrada por visões da mãe falecida. O primeiro terço do filme completa-se com a chegada à filisteia comunidade de novos-ricos da industrial Buffalo, Nova Iorque, de um “baronete” inglês com um título e nenhum dinheiro, Thomas Sharpe (Tom Hiddleston). Ele vai ensinar a gata borralheira a dançar valsa sem apagar as velas do candelabro que carrega, enquanto a sua sorumbática irmã, Lucille (Jessica Chastain), toca piano na penumbra.

Mas é na segunda parte que del Toro joga todas as suas cartas, com uma história centrada nas agruras deste insólito triângulo num estranho mausoléu a afundar na argila. E aí o que se tem é uma verdadeira salada gótica – com um especial incremento de ketchup.

A estas alturas com uma vasta tradição a pesar sobre si, o realizador joga como pode com uma rocambolesca variedade de elementos. Das tantas conexões que se podem fazer com o passado, no entanto, a mais interessante e inusitada é a ostensiva utilização da cor como porta de entrada para uma incursão no universo de Edgar Allan Poe. Esta não é feita diretamente, mas através do filtro das magníficas reinterpretações de Richard Matheson e Roger Corman no ciclo que este último dirigiu nos anos 60.

De um lado, existe a história centrada em três personagens com sugestões de incesto num castelo que “respira” e está prestes a desabar – uma metáfora para a imoralidade aristocrática tal como encontrada em A Queda da Casa de Usher. De outro, está o vermelho como signo da morte do estupendo A Máscara da Morte Vermelha, simbolismo que o seu diretor de fotografia, Nicholas Roeg, retomou ao adaptar outra fã de visitantes do além, Daphne du Maurier, no belíssimo Don’t Look Now (Aquele Inverno em Veneza).

Já as origens do próprio del Toro como realizador vindo do horror denotam-se numa oferta de doses inauditas de gore e lâminas afiadas para grandes audiências – ainda que depois de O Exorcista tudo se tornou possível nesta esfera. Para os seus momentos explícitos ele vai buscar as figuras modiglianas da aterradora monstruosidade de Mama, produzido pelo próprio.

Sinal dos tempos, é de se ressaltar em termos de leitura social a transformação do patriarcalismo rígido de outras eras num assunto de meninas – afinal está-se diante de madames que, cada uma à sua maneira, “foi à sua vida”. O argumento também confere a qualidade de “inventor” para o aristocrata falhado e estabelece o contraponto puro-e-duro da sua decadência na figura dos empreendedores que “construíram este país” (os Estados Unidos).

Wasikowska vai fazendo escola por estas andanças (Alice no País das Maravilhas, Jane Eyre) e repete a parceria com Tom Hiddleston depois do vampiresco e idiossincrático Só os Amantes Sobrevivem. Jessica Chastain, que também entrava em Mama, mostra que as férias remuneradas que tirou em Perdido em Marte foram um voo passageiro e concentra muito da graça do filme.

No saldo final de sustos, não se pode acusar del Toro de falta de ideias – mas antes de quase sucumbir ao peso delas com uma narrativa com problemas de fluidez. Surgido da ambição de se produzir algo menos fútil do que as releituras “góticas” à base de CGI que se tem andado a fazer, Crimson Peak termina por ser apenas em parte satisfatório. Isto porque o filme não deixa de ficar refém do seu apurado visual – com os trajes propositadamente irrealistas e exuberantes de Kate Hawley e, certamente, o design ultraestilizado do castelo feito por Tom Sanders. Esse caráter plástico certamente fará mais fácil a vida de espectadores mais sensíveis ao ficar-se pela superfície na hora de criar uma atmosfera condizente com o peso mórbido de uma história de maldições ancestrais com insinuações de incesto, matricídio, loucura e outras iguarias. 

O MELHOR: só para variar, é um filme de grande orçamento com ideias.
O PIOR: quase sucumbir ao peso delas (e da vasta tradição de histórias góticas).


Roni Nunes

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